A CARIDADE NOS DISPÕE A SUPORTAR MANSAMENTE OS DANOS
CAUSADOS PELO OUTROS
1
Coríntios 13:4
“A caridade é sofredora, é benigna.”
O apóstolo, nos versículos anteriores, apresenta como a
caridade – ou um espírito de amor cristão – é, no cristianismo, algo grande e
essencial: que é muito mais necessária e excelente que quaisquer dos dons
extraordinários do Espírito; que excede de longe a todas as realizações e
sofrimentos externos e, resumindo, é a soma de tudo o que seja distinto e
salvífico no cristianismo, a própria vida e alma de toda religião, sem a qual,
ainda que déssemos todos os bens para alimentar o pobre, e nossos corpos para
serem queimados, nada seríamos. E agora ele prossegue, à medida que o assunto
naturalmente o conduz, para mostrar a natureza excelente da caridade,
descrevendo seus diversos frutos amáveis e excelentes. No nosso texto, dois
deles são mencionados: ela é sofredora,
no que diz respeito ao mal e dano recebidos dos outros; e benigna, no que diz respeito ao bem a ser feito aos outros.
Manejando agora o primeiro destes pontos, me esforçarei por demonstrar:
QUE
A CARIDADE, OU UM ESPÍRITO VERDADEIRAMENTE CRISTÃO, NOS DISPORÁ A MANSAMENTE
SUPORTAR O MAL QUE RECEBEMOS DOS OUTROS, OU OS PREJUÍZOS QUE POSSAM NOS CAUSAR.
A mansidão é grande parte do espírito cristão. Cristo,
naquele urgente e tocante chamado e convite que temos no capítulo
décimo-primeiro de Mateus, no qual convida a todos os cansados e
sobrecarregados a virem a ele para descansar, menciona em particular que
viessem para aprender dele, pois
adiciona: “sou manso e humilde de
coração.” E a mansidão, no que diz respeito aos danos recebidos dos homens,
é chamada de longanimidade nas
Escrituras, e é sempre mencionada como um exercício, ou fruto do espírito
cristão: “Mas o fruto do Espírito é:
caridade, gozo, paz, longanimidade...” (Gl 5:22); e: “Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor, que andeis como é digno da
vocação com que fostes chamados, com toda a humildade e mansidão, com longanimidade...”
(Ef 4:1,2), e: “Revesti-vos, pois, como
eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de benignidade,
humildade, mansidão, longanimidade, suportando-vos uns aos outros e
perdoando-vos uns aos outros, se algum tiver queixa contra outro; assim como
Cristo vos perdoou, assim fazei vós também.” (Cl 3:12, 13)
Ao trabalhar mais plenamente sobre este ponto, irei: i)
notar alguns dos vários tipos de danos que os outros podem nos causar; ii)
mostrar o que se quer dizer por mansamente suportar tais danos; e, iii) como
esse amor, que é a soma do espírito cristão, nos disporá a fazer isso.
I. Notarei brevemente
alguns dos vários tipos de danos que podemos ou de fato recebemos dos outros.
Alguns prejudicam os outros nos seus negócios, pela injustiça
e desonestidade na sua maneira de relacionar-se com eles, sendo fraudulentos e
enganadores, ou pelo menos ao levá-los a agir no escuro, e ao tomar vantagem de
sua ignorância. Também ao oprimi-los, tomando vantagem de suas necessidades;
sendo-lhes infiéis ao nao cumprir com suas promessas e pactos, e sendo remissos e relaxados em algum empreendimento no qual seus próximos os
empregam; eles nada visam senão obter o preço estipulado, sendo despreocupados quanto ao máximo aproveitamento do
tempo na realização da tarefa a eles proposta; ou ao pedir preços exorbitantes
pelo que fazem; ou ao reter o que é devido ao próximo injustamente,
negligenciando pagar suas dívidas; ou pondo o próximo desnecessariamente em
problemas e dificuldades para obterem o que é deles por direito.
Além disso, ha inúmeros outros métodos pelos quais os homens
prejudicam uns aos outros em seus negócios, pela abundância de caminhos
tortuosos e perversos, nos quais estão longe de fazer aos outros o que
desejariam fosse feito a si mesmos, e pelos quais provocam-se e prejudicam-se
mutuamente.
Alguns prejudicam o bom nome dos outros, ao reprová-los ou
falar mal deles pelas costas. Nenhum dano é mais comum, e nenhuma iniquidade
mais frequente ou vil do que essa. Outras formas de dano são abundantes, mas a
quantidade de dano causado por este tipo de maledicência não tem conta. Outros,
sem dizer o que é diretamente falso, grandemente representam mal as coisas,
pintando tudo o que diz respeito ao próximo com as piores cores, exagerando
suas faltas, e as apresentando como muito maiores do que realmente são, sempre
falando deles de uma maneira injusta e desonesta.
Grande quantidade de prejuízo é feita entre as pessoas ao
julgarem-se mutuamente sem a caridade, interpretando de modo prejudicial e maldoso
as palavras e ações dos outros.
As pessoas podem prejudicar grandemente as outras em seus
pensamentos, ao injustamente manterem pensamentos maldosos sobre elas, ou as
tendo em baixa estima. Alguns são profunda e continuamente prejudiciais aos
outros, pelo desprezo que habitualmente têm nos corações a respeito deles, e
pela disposição de pensar o pior deles. E, assim como o fluxo de pensamentos,
muito se faz para o prejuízo dos outros por meio de palavras; pois a língua
encontra-se muito disposta a ser o instrumento ímpio da expressão dos maus pensamentos
e sentimentos da alma; daí, nas Escrituras (Jó 5:21), ela ser chamada de
açoite, e ser comparada (Sl 140:3) às peçonhas de algumas das mais venenosas
espécies de serpentes, cuja picada é capaz de levar à morte.
Às vezes, os homens prejudicam os outros nos seus
tratamentos e ações para com eles, e nos atos injuriosos que cometem contra
eles. Se vestidos de autoridade, às vezes, conduzem-se de modo bastante
prejudicial para com os que estão sob sua autoridade, se comportando muito
presunçosa, autoritária e tiranicamente para com eles.
Às vezes, os que estão sob autoridade, comportam-se de modo
bastante prejudicial para com os que estão acima deles, ao negarem-lhes o
respeito e a honra que lhes é devido pelas suas posições, e, desse modo, a si
mesmos também, quando ocupam essas posições.
Alguns se conduzem de modo bastante prejudicial para com os
outros pelo exercício de um espírito em extremo egoísta, tendo um elevado
conceito de si mesmos, e aparentemente não se preocupando com o bem ou benefício
do próximo, mas todos os seus projetos são apenas para o bem de seus próprios
interesses.
Alguns se conduzem prejudicialmente pela manifestação de um
espírito altivo e orgulhoso, como se pensassem ser mais excelentes que todos os
outros, e que não devessem se preocupar com mais ninguém senão consigo mesmos.
Isso se mostra em seu aspecto, conversas e ações, e pelo seu comportamento
grandemente pretencioso em geral, que chega a tal ponto que os que estão a
volta deles sentem, e com razão, que são por eles injuriados.
Alguns se conduzem muito prejudicialmente pelo exercício de
um espírito voluntarioso, sendo tão desesperadamente estabelecidos em ter seus próprios
caminhos, que irão, se possível, curvar tudo o mais à sua própria vontade, e
jamais alterarão sua carreira, nem cederão aos desejos de outrem. Eles fecham
os olhos contra a luz ou motivos que os outros possam oferecer, e não têm
preocupação alguma com a inclinação de ninguém mais senão a sua própria, sendo
sempre perversos e obstinados em realizar as coisas do seu modo.
Alguns se conduzem prejudicialmente durante o período em que
tomam parte dos assuntos públicos, agindo menos pela preocupação com o bem
público, e mais com o espírito de oposição a algum partido, ou a alguma pessoa
em particular, de modo que a pessoa ou partido oposto é prejudicada, e com frequência
grandemente provocada e exasperada.
Alguns prejudicam os outros pelo espírito malicioso e ímpio
que entretêm contra eles, com ou sem motivo. Não é incomum que as pessoas se
desgostem ou até mesmo se odeiem, não acariciando qualquer coisa semelhante ao
amor um pelo outro nos corações; mas, quer reconheçam ou não, odiando na
realidade um ao outro, não tendo prazer na honra ou prosperidade do outro, mas,
ao contrário, se agradando quando são lançados na adversidade, tola e
impiamente pensando que, talvez, a queda do outro signifique a sua própria
exaltação, o que nunca ocorre.
Alguns prejudicam os outros pelo espírito de inveja que lhes
mostram, mantendo uma disposição hostil para com eles, sem razão nenhuma, a não
ser devido à honra e prosperidade que lhes invejam.
Muitos prejudicam os outros por um espírito de vingança,
deliberadamente pagando o mal com o mal, por danos reais ou imaginários que
receberam deles. Alguns, enquanto viverem, manterão rancor nos corações, e no
momento em que se oferecer a oportunidade, agirão contra eles com o espírito da
malícia. E em inúmeros outros modos específicos que poderiam ser mencionados os
homens prejudicam uns aos outros, embora esses mencionados possam ser
suficientes para o presente propósito.
II. Prossigo para
mostrar o que se quer dizer por mansamente suportar tais danos, ou como devem
ser mansamente suportados.
Aqui mostrarei primeiro a natureza do dever ordenado; e
então o porquê de ser chamado longanimidade, ou paciência duradoura.
1. Mostrarei a
natureza do dever de mansamente suportar os danos que sofremos dos outros.
Primeiro, implica que os danos sofridos devem ser suportados sem que nada seja feito para vingá-los.
Há muitos modos pelos quais os homens se vingam, não apenas
ao realmente infligir algum sofrimento imediato sobre aquele que o prejudicou,
mas por qualquer coisa, seja nas palavras, seja na conduta, que mostre um
espírito amargo contra o outro pelo que fez. Logo, se após sermos ofendidos ou
prejudicados, falarmos condenatoriamente ao nosso próximo, com o propósito de
rebaixá-lo ou prejudicá-lo, e para que gratifiquemos o espírito amargo que
sentimos no coração pelo prejuízo sofrido, isso é a vingança.
Aquele, portanto, que exerce a longanimidade cristã em
relação ao próximo, suportará o dano recebido dele sem se vingar ou retaliar,
quer por atos prejudiciais quer por palavras rancorosas. Ele o suportará sem
fazer coisa alguma contra o próximo que manifeste o espírito do ressentimento;
sem falar com ele, ou dele, com palavras vingativas, e sem permitir um espírito
vingativo no coração, ou que se manifeste em sua prática. A tudo receberá com
uma postura calma, impassível, e com uma alma cheia de mansidão, quietude e
bondade. Manifestará isso em todo o seu proceder para com aqueles que o
prejudicaram, seja na sua presença, seja na ausência.
É por isso que essa virtude é recomendada nas Escrituras com
o nome de benignidade, ou como sempre conectado a ela, como se pode ver em
Tiago 3.17 e Gálatas 5.22. Naquele que exercita apropriadamente o espírito
cristão, não haverá uma expressão passional, temerária ou apressada, nem uma
postura amarga e exasperada, ou um ar de violência no falar ou no gesto. Mas,
ao contrário, o gesto, as palavras e o procedimento, todos manifestarão o sabor
da pacificação, calma e benignidade. Ele talvez reprove seu próximo. Esse pode
ser claramente seu dever. Mas, se o fizer, será sem indelicadeza, e sem aquela
severidade que tende apenas à cólera. Ainda que seja com força de razão e
argumento, e com clara e decidida admoestação, será sem refletir raiva ou linguagem
depreciativa. Pode mostrar desaprovação pelo que foi feito, mas não o será com
uma amostra de alto ressentimento, e sim como uma reprovação ao ofensor pelo
pecado contra Deus, ao invés da ofensa contra si mesmo. É mais um lamento pela
sua calamidade, do que ressentimento pelo seu prejuízo, buscando seu bem, não
seu dano; é como alguém que mais deseja livrar o ofensor do erro no qual caiu,
do que igualar-se a ele pela injúria que lhe foi feita.
O dever ordenado também implica,
Segundo, que os danos sejam suportados com a continuação do amor no coração, e sem aquelas emoções e paixões
interiores que tendem a interrompê-lo e destruí-lo.
Devemos suportar os danos, onde formos chamados a sofrê-los,
não apenas sem que manifestemos um espírito mal e vingativo em nossas palavras
e ações, mas também sem tal espírito no coração. Devemos não apenas controlar
nossas paixões quando somos prejudicados, e nos restringir em dar lugar à vingança
exterior, mas devemos suportar o dano sem o espírito de vingança no coração.
Não apenas um comportamento externo polido deve ter continuidade, mas também,
com ele, um amor sincero. Não devemos cessar de amor o próximo porque ele nos
prejudicou. Podemos nos compadecer, mas não odiá-lo por isso. O dever ordenado
também implica,
Terceiro, que suportemos os danos sem que percamos a calma e repouso de nossas mentes e corações.
Eles devem não apenas ser suportados sem uma postura áspera,
mas com uma continuidade da calma interior e do repouso de espírito.
Quando se permite que os prejuízos que sofremos perturbem
nosso repouso de mente, e nos coloquem em excitação e tumulto, então, cessamos
de suportá-los no verdadeiro espírito da longanimidade.
Se se permite ao prejuízo nos descompor e inquietar, e
quebrar nosso descanso interior, não podemos desfrutar de nós mesmos, e não
estamos em um estado apto a nos ocupar em nossos variados deveres. Não estamos
especialmente em um estado para os assuntos religiosos – para a oração e a
meditação.
Tal estado de mente é o contrário do espírito de
longanimidade e de mansamente suportar os prejuízos de que se fala no texto. Os
cristãos devem ainda manter a calma e serenidade de suas mentes sossegadas, sob
qualquer prejuízo que possam sofrer. Suas almas devem ser serenas, não como a
superfície instável da água, agitada por todo vento que sopra. Não importa que
males sofram, ou que prejuízos possam lhes infligir, ainda devem agir no
princípio das palavras do Salvador a seus discípulos: “Na vossa paciência,
possuí a vossa alma.” (Lucas 21.19)
O dever de que falamos também implica, uma vez mais,
Quarto,
que em muitas situações onde somos
prejudicados, devemos estar dispostos a
sofrer muito em nossos interesses e sentimentos pela causa da paz, ao invés de
fazer o que tivermos a oportunidade e, talvez, o direito de fazer na defesa de
nós mesmos.
Quando sofremos prejuízos dos outros, o caso é que, com frequência,
um espírito cristão, se apenas o exercitarmos como nos convém, nos disporá a
abster-nos de tomar a vantagem que possamos ter para nos vindicar e fazer
justiça a nós mesmos. Pois, agindo de outro modo, podemos ser o meio em trazer
uma grande calamidade sobre o que nos prejudicou; e a ternura por ele pode e deve
nos dispor a um grande grau de abstenção e a sofrermos de alguma forma nós
mesmos, ao invés de trazer excessivo sofrimento sobre ele. Ademais, tal atitude
provavelmente levaria à violação da paz, e ao estabelecimento da hostilidade,
enquanto que, nesse caminho, pode haver esperança de ganhar nosso próximo, e de
um inimigo, torná-lo um amigo.
Essas coisas estão patentes a partir do que o apóstolo diz
aos coríntios quanto às demandas judiciais mútuas: “Na verdade, é já realmente
uma falta entre vós terdes demandas uns contra os outros. Por que não sofreis,
antes, a injustiça? Por que não sofreis, antes, o dano?” (1 Co 6.7)
Não que todos os esforços dos homens para defender-se e
fazer justiça quando são prejudicados por outros, sejam censuráveis, ou que tenham
que sofrer todos os danos que agrade a seus inimigos infligir-lhes, ao invés de
aproveitar a oportunidade que tenham para defender e vindicar-se a si mesmos,
ainda que seja para o dano daquele que lhes prejudica.
Mas em muitos, e provavelmente na maior parte dos casos, os
homens devem ser primeiramente longânimos [suffer
long], no espírito da caridade longânima do texto. E a situação pode ser
frequentemente tal que podem ser chamados a sofrer consideravelmente, como
orientará a caridade e a prudência, pela causa da paz, e por um amor cristão
sincero àquele que lhes prejudica, ao invés de se entregarem ao caminho que
possam ter oportunidade.
Tendo assim mostrado o que essa virtude implica, agora
mostrarei, brevemente:
2. Por
que é chamada longanimidade [long-suffering], ou paciência duradoura [suffering
long].
Ela parece ser assim chamada, especialmente por dois
motivos:
Primeiro,
porque devemos mansamente suportar não apenas um pequeno dano, mas também uma
enorme porção de tratamento prejudicial dos outros.
Devemos perseverar e continuar em uma disposição calma, sem
cessar de amar nosso próximo, não apenas quando nos prejudica um pouco, mas
quando muito nos prejudica, e os danos que nos causa são grandes. Assim,
devemos suportar não apenas alguns poucos danos, mas uma enormidade, e ainda
que nosso próximo persista no seu tratamento prejudicial conosco por longo
tempo.
Quando se diz que a caridade suporta [suffer] por muito tempo [long],
não podemos daí inferir que devemos suportar os danos mansamente por uma
temporada e que, após essa temporada, devemos parar de suportá-los. O sentido não é que devamos, de fato,
suportar prejuízos por um longo tempo e, por fim, parar de suportá-los. Mas é
que devemos mansamente persistir em suportá-los, ainda que perdurem por longo
tempo, mesmo até ao fim. O espírito da longanimidade nunca deve cessar.
E é chamada longanimidade:
Segundo, porque em alguns casos devemos estar dispostos a sofrer muito em nossos interesses, antes que
aproveitemos as oportunidades para nos fazer justiça.
Embora por fim devamos defender-nos, quando levados, por
assim dizer, pela necessidade a isso, contudo, não devemos fazê-lo por
vingança, ou para prejudicar aquele que nos prejudicou, mas tão somente pela
necessária autodefesa. Mesmo assim, em muitos casos, deve-se ceder à paz, e
agir em um espírito cristão para com o que nos prejudicou, para que não o
prejudiquemos.
Tendo assim mostrado de que maneira somos frequentemente
prejudicados pelos outros, e o que implica em mansamente suportar os prejuízos
assim infligidos, venho agora a mostrar:
III. Como esse amor ou
caridade, que é a soma do espírito cristão, nos disporá a mansamente suportar
esses danos.
E pode-se demonstrar isso tanto em referência ao amor a Deus
quanto ao amor a nosso próximo.
1. O amor a Deus e ao
Senhor Jesus Cristo tem a tendência de nos dispor a isso. Pois,
Primeiro,
o amor a Deus nos dispõe a imitá-lo, portanto, nos dispõe à mesma
longanimidade que ele manifesta. A longanimidade com frequência é referida como
um dos atributos de Deus. Em Êxodo 34.6 é dito: “E, passando o SENHOR por
diante dele, clamou: SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo.” [ARA]
Em Romanos 2.4, o apóstolo diz: “Ou desprezas tu as riquezas da sua
benignidade, e paciência, e longanimidade...?”
Muito maravilhosamente se manifesta a longanimidade de Deus
na sua tolerância [bearing] de
inumeráveis injúrias dos homens, e injúrias que são grandes e muito persistentes.
Se considerarmos a impiedade que há no mundo e então considerarmos como Deus
continua com o mundo em existência, e não o destrói, mas lhe mostra inúmeras
misericórdias; se considerarmos as abundâncias de sua providência e graça
diárias, fazendo seu sol nascer sobre os maus e os bons, e enviando chuva
igualmente sobre justos e injustos, ofertando suas bênçãos espirituais
incessantemente e para todos, perceberemos como é abundante sua longanimidade
para conosco.
Se considerarmos sua longanimidade com algumas das grandes e
populosas cidades do mundo, e pensarmos como constantemente as dádivas de sua
bondade são concedidas e consumidas por eles, e depois considerarmos como é
grande a impiedade dessas mesmas cidades, isso nos mostrará como é
maravilhosamente grande sua longanimidade.
E essa mesma longanimidade foi manifestada a muitas pessoas
particulares, em todas as eras do mundo. Ele é longânimo com os pecadores que
poupa, e a quem oferece sua misericórdia, mesmo enquanto ainda são rebeldes
contra ele. E é longânimo com seu próprio povo eleito, muitos dos quais viveram
no pecado, desprezando tanto sua bondade quanto sua ira. Contudo, por muito
tempo os suportou, mesmo até ao fim, até que fossem trazidos ao arrependimento
e feitos, pela sua graça, vasos de misericórdia e graça. E esta misericórdia
lhes mostrou enquanto eram inimigos e rebeldes, como nos diz o apóstolo acerca
de sua própria situação: “Sou grato para com aquele que me fortaleceu, Cristo
Jesus, nosso Senhor, que me considerou fiel, designando-me para o ministério, a
mim, que, noutro tempo, era blasfemo, e perseguidor, e insolente. Mas obtive
misericórdia, pois o fiz na ignorância, na incredulidade. Transbordou, porém, a
graça de nosso Senhor com a fé e o amor que há em Cristo Jesus. Fiel é a
palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar
os pecadores, dos quais eu sou o principal. Mas, por esta mesma razão, me foi
concedida misericórdia, para que, em mim, o principal, evidenciasse Jesus
Cristo a sua completa longanimidade, e servisse eu de modelo a quantos hão de
crer nele para a vida eterna.” (1 Tm 1.12-16)
Ora, é da natureza do amor, ao menos em referência a um
superior, que ele sempre inclina e dispõe à sua imitação. Um amor do filho a
seu pai o dispõe a imitar o pai, e especialmente o amor dos filhos de Deus os
dispõe a imitar seu Pai celeste. E assim como ele é longânimo, também eles o
devem ser.
Segundo,
o amor a Deus nos disporá a assim expressar nossa gratidão pela sua
longanimidade exercida em nós. O amor não apenas dispõe a imitar, mas opera
pela gratidão. Aqueles que amam a Deus lhe serão gratos pela abundante
longanimidade que exerceu para com eles em particular. Aqueles que amam a Deus
como devem, terão esse senso de sua maravilhosa longanimidade para com eles nas
muitas injúrias que lhe ofereceram, que lhes parecerá ninharia suportar as
injúrias causadas a eles pelos seus semelhantes.
Todas as injúrias que receberam dos outros, em comparação
com as que foram oferecidas a Deus, parecerão menos do que alguns centavos em
comparação com dez mil talentos. E como aceitam agradecidamente e se admiram da
longanimidade de Deus para com eles, também não podem senão testificar sua
aprovação e gratidão por ela, manifestando até onde forem capazes, a mesma
longanimidade com os outros. Pois, se se recusarem a exercer a longanimidade
com aqueles que os prejudicaram, na prática, desaprovariam a longanimidade de
Deus para consigo mesmos; pois aquilo que verdadeiramente aprovamos e em que
nos deleitamos, não podemos, na prática, rejeitar.
Então, a gratidão pela longanimidade de Deus também nos
disporá à obediência a Deus neste particular, quando nos ordena que sejamos
longânimos com os outros. E assim, novamente:
Terceiro,
o amor a Deus tende a humildade, a qual é uma raiz principal de um espírito manso
e longânimo.
O amor a Deus, uma vez que o exalta, tende a diminuir os pensamentos
e a estima de nós mesmos, e leva a um profundo senso de nossa indignidade e nosso
merecimento do mal. Porque aquele que ama a Deus está sensível da odiosidade e
vileza do pecado cometido contra o ser a quem ama. Discernindo em si uma
abundância daquilo, aborrece a si mesmo em seus próprios olhos, como indigno de
qualquer bem, e merecedor de todo mal.
Sempre se acha a humildade conectada com a longanimidade,
como diz o apóstolo: “Com toda a humildade e mansidão, com longanimidade,
suportando-vos uns aos outros em amor.” (Efésios 4.2) Um espírito humilde nos
indispõe de ressentir-nos dos prejuízos; pois o que é pequeno e indigno aos
seus olhos, não pensará tanto de um prejuízo recebido por ele, quanto o que se
tem em alta conta, pois se julga maior e mais alta a enormidade da ofensa
contra quem é grande e importante, do que quem é desprezível e vil. É o orgulho
ou a presunção que é o principal fundamento de um elevado e amargo
ressentimento, e de um espírito implacável e vingativo.
Quarto, o amor a Deus dispõe os homens a levarem em conta a mão de Deus nos danos que sofrem, e não apenas a
mão do homem, e a mansamente submeterem a sua vontade nisso.
O amor a Deus dispõe os homens a ver sua mão em tudo; a
confessá-lo como o governante do mundo, e regente da providência; e a
reconhecer sua disposição em tudo o que acontece. E o fato de que a mão de Deus
está mais preocupada em tudo o que nos acontece do que está o tratamento dos
homens deve nos conduzir, em grande medida, a não pensar nas coisas como se de
homens, mas ter-lhes respeito principalmente como de Deus – como ordenado por
seu amor e sabedoria, mesmo quando sua fonte imediata for a malícia ou a
insensatez de um semelhante. E, se de fato considerarmos e sentirmos que elas
procedem da mão de Deus, então estaremos dispostos a mansamente recebê-las e
calmamente nos submetermos a elas, e a conceder que os maiores danos recebidos
dos homens são justa e até mesmo bondosamente ordenados por Deus, e assim
estarmos longe de qualquer irritação ou tumulto de mente por causa delas. Foi
tendo isso em vista que Davi aceitou tão mansa e quietamente as maldições de
Simei, quando se adiantou e o amaldiçoou, atirando-lhe pedras (2 Sm 16.5,10); ele
disse que o Senhor o havia encarregado de assim proceder, e proibiu seus
seguidores de se vingarem. E, uma vez mais,
Quinto, o amor a Deus nos dispõe a mansamente suportar os danos de
outros, porque nos coloca muito acima dos
danos dos homens. Ele assim o faz em dois aspectos.
Em primeiro lugar
nos coloca acima do alcance dos danos dos outros, pois nada jamais pode
verdadeiramente ferir aqueles que são verdadeiros amigos de Deus. Sua vida está
escondida com Cristo em Deus. Ele, como seu guardião e amigo, os carregará nas
alturas, como em asas de águia e todas as coisas cooperarão para o bem deles
(Rm 8.28). A ninguém será permitido que lhes machuque, enquanto forem
seguidores daquele que é bom (1 Pe 3.13).
Em segundo lugar,
enquanto o amor a Deus prevalece, tende a colocar as pessoas acima dos danos
humanos, no sentido de que quanto mais amam a Deus, mais colocarão nele toda a
sua felicidade. Olharão para Deus como seu tudo, e buscarão sua felicidade e
porção em seu favor, e assim não apenas no quinhão de sua providência. Quanto
mais amam a Deus, menos colocam seus corações nos seus interesses mundanos, os
quais são tudo o que seus inimigos podem tocar. Os homens podem prejudicar o
povo de Deus apenas com respeito a seus bens terrenos. Mas, quanto mais um
homem ama a Deus, menos seu coração está firmado nas coisas deste mundo, e
menos sente os prejuízos que seus inimigos possam infligir, porque não podem
alcançar além dessas coisas. E assim, com frequência, é o caso que os amigos de
Deus dificilmente pensam que os prejuízos que sofrem dos homens são dignos de serem
chamados de prejuízos; e a calma e quietude de suas mentes dificilmente se perturba
por eles. Enquanto tiverem o favor e amizade Deus, não estão muito preocupados com as más obras
e os prejuízos dos homens. O amor a Deus e um senso do seu favor os dispõe a
dizer sobre os prejuízos dos homens, quando os tirarem seus deleites mundanos,
como Mefibosete falou a respeito da tomada da terra por Ziba: “Fique ele, muito
embora, com tudo, pois já voltou o rei, meu senhor, em paz à sua casa.” (2 Sm
19.30) E, assim como o amor a Deus nos disporá, nestes diversos aspectos, à
longanimidade sob os danos recebidos dos outros, também,
2. O amor ao próximo
nos disporá ao mesmo.
Neste sentido a caridade é longânima – a longanimidade e a
paciência são sempre o fruto do amor. Como intima o apóstolo (Ef. 4.1,2), faz
parte do nosso andar de modo digno da nossa vocação cristã que andemos “com
toda a mansidão e humildade.” O amor suportará uma multidão de faltas e
ofensas, e nos inclinará a encobrir os pecados (Pv 10.12). Assim vemos por
abundante observação e experiência que, aqueles pelos quais temos grande e
forte afeição, sempre suportamos muitissimamente mais do que daqueles de quem
não gostamos, ou a quem somos indiferentes. Um pai suportará muitas coisas em
seu próprio filho que reprovaria grandemente no filho de outro. Um amigo tolera
muitas coisas em seu amigo que não toleraria em um estranho. Mas não há
necessidade de multiplicar palavras, ou razões, neste ramo do assunto, pois ele
é excessivamente claro a todos.
Todos sabem que o amor é de tal natureza que é diretamente
contrário tanto ao ressentimento quanto à vingança, pois estas coisas implicam
rancor, o qual é o exato reverso do amor, e não pode coexistir com ele. Sem me
demorar, portanto, nesse ponto, passo, em conclusão, a fazer algum breve
aproveitamento do assunto.
APLICAÇÃO
1. Ele exorta a todos
nós ao dever de mansamente suportar os danos que possamos receber dos outros.
Que o que foi dito possa ser aproveitado por nós para
suprimir toda ira, vingança, e amargura de espírito para com aqueles que nos
prejudicaram ou que possam nos prejudicar algum dia, quer nos prejudiquem em
nossos negócios, ou na boa reputação,
quer abusem de nós com suas línguas ou com suas mãos, quer sejam nossos
superiores, inferiores ou nossos iguais o que nos prejudicam. Não digamos em
nosso coração: “Farei a ele o mesmo que fez a mim.” Não nos esforcemos a, como
algumas vezes se diz, “sermos semelhantes a ele,” por algum tipo de retaliação,
ou ao ponto de permitirmos que qualquer ódio, amargura ou índole vingativa
surja em nossos corações. Esforcemo-nos, sob todo dano, a preservar a calma e
quietude de espírito; estarmos prontos a sofrer consideravelmente em nossos
justos direitos, a fazer alguma que possa ocasionar nosso ânimo e nos levar a
viver em brigas e contendas. Com este propósito devo oferecer para consideração
os seguintes motivos.
Primeiro,
considere o exemplo que Cristo nos deu. Ele foi de um espírito manso e quieto,
e de um comportamento muito longânimo. Em 2 Co 10.1, o apóstolo nos fala acerca
da mansidão e gentileza de Cristo. Ele mansamente suportou inúmeras e enormes
injúrias dos homens. Ele foi, em grande medida, objeto de amargo desprezo e
reprovação, e insultado e desprezado, e não lhe deram valor. Ainda que fosse o
Senhor da glória, contudo foi reputado como nada, rejeitado e não estimado
pelos homens. Foi objeto do ódio e da malícia, e de amargos insultos daqueles a
quem veio salvar. Suportou a contradição de pecadores contra si. Foi chamado de
glutão e de beberrão; mesmo sendo santo, inocente, imaculado e separado dos
pecadores, foi, contudo, acusado de ser amigo de publicanos e pecadores. Foi
chamado de enganador do povo, e muitas vezes (como em João 10.20 e 7.20)
disseram que estava louco, e possesso de demônios. Às vezes, o reprovaram (Jo
8.48), chamando-o de samaritano e dizendo que estava possesso de demônios;
aqueles eram estimados pelos judeus como os maiores réprobos, e estes como
implicando a mais diabólica impiedade. Às vezes, foi acusado de ser um ímpio
blasfemo (Jo 10.33), e alguém que, por esse motivo, merecia a morte. Outras
vezes, o acusaram de realizar milagres pelo poder e auxílio de Belzebu, o
príncipe dos demônios, e lhe chamaram de demônio (Mt 10.25). E tal era o ódio
deles contra Jesus, que concordaram em expulsar ou expelir da sinagoga qualquer
um que dissesse que ele era o Cristo. Odiavam-no com ódio mortal, e desejavam
que estivesse morto, e, de tempos em tempos, esforçavam-se em matá-lo, sim,
estavam quase sempre se esforçando para manchar suas mãos com seu sangue. Sua
própria vida lhes era um aborrecimento, e por isso o odiavam, pois não podiam
suportar que estivesse vivo (Sl 41.5). Lemos, com frequência, (como em Jo
5.16), que eles buscavam matá-lo. Alguns deles sofreram bastante para vigiá-lo
em suas palavras, para que pudessem ter algo para acusá-lo, e assim ser
capazes, com a apresentação de uma razão, de condená-lo à morte. Muitas vezes
combinaram entre si em tirar sua vida dessa maneira. Eles, com frequência, na
verdade, pegavam pedras para atirar-lhe, e uma vez o levaram ao topo de uma
colina para que pudessem atirá-lo de lá para baixo, e assim fazê-lo em pedaços.
Cristo, contudo, mansamente suportou essas injúrias, sem
ressentimento ou palavra de censura; e com uma quietude celestial de espírito
passou por todas elas. E, por fim, quando foi mais ignominiosamente tratado,
quando seu amigo professo o traiu, e seus inimigos o agarraram e o conduziram
ao açoite e à morte na cruz, foi como um cordeiro ao matadouro, não abrindo sua
boca. Nem uma só palavra de amargura escapou dele. Não houve interrupção da
calma de sua mente sob essas pesarosas aflições e sofrimentos; nem houve o
mínimo desejo de vingança. Mas, ao contrário, orou por seus assassinos para que
fossem perdoados, mesmo quando estavam prestes a pregá-lo na cruz; e não apenas
orou por eles, mas defendeu-lhes junto ao Pai, dizendo que não sabiam o que
faziam. Os sofrimentos de sua vida, e as agonias de sua morte, não
interromperam sua longanimidade para com aqueles que o prejudicaram.
Segundo, se não estivermos dispostos a mansamente suportar os
prejuízos, não estamos aptos a viver no
mundo, pois nele devemos esperar encontrar muitos prejuízos dos homens. Não habitamos em um mundo de pureza,
inocência e amor, mas em um mundo caído e corrupto, miserável e ímpio, e que
está enormemente sob o reino e domínio do pecado. O princípio do amor divino,
que uma vez esteve no coração do homem, está extinto, e agora não reina senão
em alguns, e neles em um grau muito imperfeito. Aqueles princípios que tendem à
malícia e ao dano são os princípios que a generalidade do mundo está sob o
poder. Este mundo é um lugar onde o diabo, que é chamado de o deus deste século,
tem influência e domínio, e onde multidões estão possuídas com seu espírito.
Nem todos os homens, como diz o Apóstolo (2 Te 3.2) têm fé; e, de fato, somente
alguns poucos têm o espírito da fé no coração, que leva a vida a ser governada
pelas regras da justiça e da bondade para com os outros.
O aspecto do mundo é bastante semelhante ao que falou nosso
Salvador, quando, ao enviar seus discípulos, disse: “Eis que eu vos envio como
ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e
símplices como as pombas.” (Mt 10.16) Portanto, aqueles que não possuem um
espírito de mansidão e calma, de longanimidade e tranquilidade de alma para
suportar os danos em tal mundo, são de fato miseráveis, e é provável que sejam
infelizes em cada passo de seu caminho na vida. Se cada injúria com que nos
encontrarmos, e cada impropério e ação maliciosa e injusta colocarem nossas
mentes e corações em desordem e tumulto, e perturbarem a calma e paz nas quais
podemos nos deleitar, então não podemos ter posse ou aproveitamento de
espírito, e seremos mantidos em perturbação e tumulto perpétuos, como a barca
que é levada para lá e para cá continuamente no oceano tempestuoso.
Homens que tem seus espíritos aquecidos e enfurecidos, e que
se levantam em amargo ressentimento quando são prejudicados, agem como se
pensassem que alguma coisa estranha lhes aconteceu, enquanto que são muito
tolos em assim pensar; pois não é coisa estranha de modo algum, mas apenas o
que deveria ser esperado em um mundo como este. Portanto, não agem sabiamente
aqueles que permitem que seus espíritos sejam insuflados pelos danos que sofrem;
pois um homem sábio tão somente espera mais ou menos dano no mundo e está
preparado para ele, e, em mansidão de espírito, está preparado para suportá-lo.
Terceiro, deste modo devemos
estar muito acima dos danos. Aquele que estabeleceu tal espírito e disposição
de mente, que os danos recebidos dos outros não o exasperam nem o provocam, ou
perturbam a calma de sua mente, vive, por assim dizer, acima dos danos e fora
de seu alcance. Ele os conquista, e cavalga sobre eles em triunfo, exaltado
acima de seus poderes. Aquele que tem tanto do exercício de um espirito
cristão, ao ponto de ser capaz de mansamente suportar todos os danos feitos a
ele, mora nas alturas, onde inimigo algum pode alcançá-lo.
A História nos conta que quando os persas sitiaram a
Babilônia, os muros da cidade eram tão excessivamente altos que os habitantes
costumavam ficar no topo deles e riam de seus inimigos. Desse modo, uma alma
que é fortificada com o espírito da mansidão cristã, e uma disposição de
calmamente suportar todos os danos, pode rir-se dos inimigos que a prejudicam.
Se alguém que tenha um espirito maldoso contra nós, estando, portanto, disposto
a nos prejudicar ao nos maldizer ou de alguma outra forma, ver que, ao assim
fazer, pode nos perturbar e irritar, nisso ele se gratifica. Mas se virem que,
por tudo que possam fazer, não podem interromper a calma de nossas mentes, ou
quebrar a serenidade da alma, então são frustrados em seu desígnio, e as
flechas com que nos feririam retrocederão sem que façam a execução pretendida. Enquanto
que, por outro lado, na mesma proporção em que permitimos que nossas mentes
sejam perturbadas e embaraçadas pelas injúrias oferecidas por um adversário, nós
caímos debaixo do seu poder.
Quarto,
o espirito da longanimidade cristã e da
mansidão em suportar os prejuízos, é uma
marca da verdadeira grandeza da alma. Mostra uma natureza nobre e
verdadeira e uma real grandeza de espírito, assim manter a calma da mente em
meio de injúrias e males. É uma evidência da excelência de temperamento, e de
fortaleza e força interior. “Melhor é o longânimo do que o herói da guerra, e o
que domina o seu espírito, do que o que toma uma cidade,” (Pv 16.32) isto é,
ele mostra uma natureza mais nobre e excelente, e mais verdadeira grandeza de
espírito do que os grandes conquistadores da terra. É pela pequenez de mente
que a alma é facilmente perturbada e retirada do repouso pelas invectivas e
maltrato dos homens, assim como pequenas torrentes de água são muito
perturbadas pelas pequenas desigualdades e obstáculos que encontram em seu
curso, e fazem grande barulho enquanto passam por eles, enquanto que grandes e poderosas
torrentes passam pelos mesmos obstáculos calma e quietamente, sem uma onda
sequer na superfície que mostrem que estejam perturbadas. Aquele que é senhor
de sua alma de modo tal que, quando os outros o machucam e prejudicam, possa,
não obstante, permanecer calmo e com boa-vontade interior para com eles,
compadecendo-se e perdoando-lhes de coração, manifesta nisso uma grandeza de
espírito divinal. Tal espírito manso, sossegado e longânimo mostra uma
verdadeira grandeza de alma, naquilo que exibe da grandiosa e verdadeira
sabedoria, como diz o apóstolo: “Quem entre vós é sábio e inteligente? Mostre
em mansidão de sabedoria, mediante condigno proceder, as suas obras.” (Tg 3.13)
O sábio Salomão, que bem conhecia o que pertencia à
sabedoria, frequentemente fala da sabedoria de tal espírito declarando que “Da
soberba só resulta a contenda, mas com os que se aconselham se acha a sabedoria”
(Pv 13.10); e novamente que: “A discrição do homem o torna longânimo, e sua
glória é perdoar as injúrias.” (19.11) Ainda novamente que “os sábios desviam a
ira.” (29.8). Em sentido contrário, aqueles que estão prontos a enormemente
ressentir-se dos prejuízos e a se enfurecerem e aborrecerem-se grandemente por
eles, são frequentemente mencionados nas Escrituras como pessoas de espírito
pequeno e tolo. Salomão diz: “O longânimo é grande em entendimento, mas o de
ânimo precipitado exalta a loucura;” (Pv 14.29) e novamente: “Melhor é o
paciente do que o arrogante. Não te apresses em irar-te, porque a ira se abriga
no íntimo dos insensatos;” (Ec 7:8,9) e, de novo: “O insensato encoleriza-se e
dá-se por seguro. O que presto se ira
faz loucuras, e o homem de maus desígnios é odiado. Os simples herdam a estultícia, mas os
prudentes se coroam de conhecimento.” (Pv 14.16,17,18) Por outro lado, um
espírito manso é expressamente mencionado na Escritura como um espírito
honrado, como em Pv 20.3: “Honroso é para o homem o desviar-se de contendas,
mas todo insensato se mete em rixas.”
Quinto,
o espírito da longanimidade e mansidão
cristãs é recomendado a nós pelo exemplo
dos santos.
O exemplo de Cristo apenas pode ser e é suficiente, uma vez
que é o exemplo daquele que é nosso Cabeça, Senhor e Mestre, de quem
professamos ser seguidores, e cujo exemplo cremos ser perfeito. Contudo, alguns
podem estar prontos a dizer, com relação ao exemplo de Cristo, que ele era
impecável, e não tinha corrupção em seu coração, e que não poderia ser esperado
de nós que procedêssemos em todas as coisas como ele. Agora, ainda que esse não
seja objeção razoável, contudo o exemplo dos santos, que foram homens de
paixões semelhantes às nossas, não fica sem seu uso especial, e pode em alguns
aspectos ter uma influência particular. Muitos dos santos estabeleceram exemplos
brilhantes dessa longanimidade que foi recomendada.
Por exemplo, com que mansidão Davi suportou o tratamento
injurioso que recebeu de Saul, quando foi caçado por ele como uma perdiz pelas
montanhas, perseguido com a mais descabida inveja e malícia, e com desígnios
assassinos, embora tenha sempre se portado obedientemente diante dele. E quando
teve a oportunidade colocada em suas mãos de liquidá-lo, e de livrar-se de
imediato do seu poder, estando os outros ao seu redor dispostos a pensar que
era muito lícito e louvável que assim procedesse, contudo, uma vez que Saul era
o ungido do Senhor, preferiu antes confiar a si mesmo e a todos os seus
interesses a Deus, e aventurar sua vida em suas mãos, e permitiu que seu
inimigo ainda vivesse. Quando, após isso, viu que sua clemência e bondade não
venceram Saul, mas que ainda o perseguia, e quando teve novamente a ocasião de
destruí-lo, escolheu antes exilar-se como um errante e desterrado, a prejudicar
aquele que o teria destruído.
Outro exemplo é o de Estêvão, de quem se diz (At 7.59,60)
que, quando seus perseguidores descarregavam sua fúria sobre ele, apedrejando-o
até à morte, “invocava e dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito! Então,
ajoelhando-se, clamou em alta voz: Senhor, não lhes imputes este pecado!”
Menciona-se essa oração como algo que fez com seu último suspiro, como as
últimas palavras que proferiu após orar ao Senhor Jesus para que recebesse seu espírito.
Imediatamente após fazer essa oração por seus perseguidores, somos informados
que caiu desacordado, perdoando-os assim e encomendando-os à benção de Deus
como o último ato de sua vida.
Outro exemplo é o do apóstolo Paulo, que foi objeto de
inúmeros danos de homens ímpios e irracionais. Desses danos e de sua maneira de
proceder sob eles, dá-nos algum relato em 1 Co 4.11-13: “Até à presente hora,
sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa,
e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos
injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados,
procuramos conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo do
mundo, escória de todos.” Assim, manifestou um espírito manso e longânimo, sob
todos os danos que se amontoaram sobre si.
E não apenas temos esses relatos a respeito dos homens
inspirados, mas temos na mera história humana não inspirada o fantástico
heroísmo e longanimidade dos mártires e de outros cristãos, debaixo do
tratamento mais irracional e ímpio recebido dos homens. Isso tudo deve nos
levar ao mesmo espirito manso e longânimo.
Sexto, esse é o modo de ser
recompensado com o exercício da longanimidade divina a nós.
As Escrituras nos informam que, daqui por diante, Deus
lidará com os homens do modo pelo qual eles lidam com os outros. Assim nos diz
o Salmo 18.25,26: “Para com o benigno, benigno te mostras; com o íntegro,
também íntegro. Com o puro, puro te mostras; com o perverso, inflexível.” Também,
“Com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que
tiverdes medido, vos medirão também.” (Mt 7.2) E novamente: “Se perdoardes aos
homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará; se, porém, não
perdoardes aos homens as suas ofensas,
tampouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas.” Por transgressões, aqui, se
quer dizer o mesmo que injúrias feitas a nós; de modo que, se não suportarmos
as injúrias dos homens contra nós, tampouco nosso Pai celeste suportará nossas
injúrias contra ele; e se não exercermos a longanimidade com os homens, não
podemos esperar que Deus a exercerá conosco. Mas, consideremos o quanto
necessitamos da longanimidade de Deus com relação às injúrias que lhe fazemos.
Como tem sido frequente e excessiva a maneira injuriosa com
que nos portamos para com Deus, e como é mal nosso tratamento dele todo dia! E
se Deus não nos suportasse, e exercesse maravilhosa longanimidade para conosco,
como seríamos miseráveis! E o que seria de nós? Que essa consideração,
portanto, influencie a todos nós a buscar esse espírito excelente que foi
falado, e a desaprovar e suprimir tudo que seja de espírito ou prática
contrária. Teria uma influência muito feliz em nós como indivíduos, e em nossas
famílias, e assim em todas as nossas associações e assuntos públicos se
espírito semelhante a esse prevalecesse. Preveniria a contenda e a luta, e
difundiria a gentileza e a bondade, a harmonia e o amor. Levaria para longe a
amargura e confusão, e toda obra má. Nossos assuntos seriam todos conduzidos,
tanto em público quanto em privado, sem fúria, ou aspereza, ou amargura de espírito;
sem expressões rudes e ultrajantes aos outros e sem quaisquer dos discursos
malignos, maledicentes e desdenhosos, que se ouvem com tanta frequência entre
os homens, os quais, ao mesmo tempo, tantos danos trazem à sociedade, e se
constituem em temível obra para o julgamento.
Mas alguns, em seus corações, podem estar prontos a objetar
contra tal tolerância mansa e tranquila às injúrias, como foi falado; e pode
ser útil mencionar e responder brevemente a algumas dessas objeções:
Objeção
1. Alguns podem ser rápidos em dizer que os danos que recebem dos homens são
intoleráveis; que aquele que os prejudicou foi irracional demais no que
disse ou fez, e que o que fez é tão injusto, injurioso e injustificável, coisas
tais, que é mais do que a carne e sangue possam suportar; que são tratados com
injustiça tal que seria suficiente para provocar um pedra; ou que são tratados
com tanto desprezo que são verdadeiramente pisados, e não podem senão se
ressentir. Mas, em resposta a essa objeção, perguntaria algumas coisas:
Primeiro,
você acha que as injúrias que você
sofre dos seus semelhantes é mais do que você tem oferecido a Deus? O seu
inimigo tem sido mais vil, irracional, mais ingrato, do que você tem sido ao
Altíssimo e Santo? Suas ofensas têm sido mais hediondas ou agravadas, ou maiores
em número, do que as suas têm sido contra seu criador, benfeitor e redentor?
Têm sido eles mais provocadores e irritantes do que sua conduta pecaminosa contra
Aquele que é o autor de todas as nossas misericórdias, e a quem você deve as
mais altas obrigações?
Segundo,
você não espera que Deus,
como até aqui o tem feito, irá suportá-lo nisso tudo, e que, apesar de tudo,
exercerá em relação a você seu amor e favor infinitos? Você não espera que Deus
lhe terá misericórdia, e que Cristo lhe abraçará com seu amor agonizante [dying], ainda que tenha sido um inimigo
tão injurioso; e que, pela sua graça, ele apagará suas transgressões e todas as
suas ofensas contra ele, e o fará seu filho por toda a eternidade, e um
herdeiro de seu reino?
Terceiro,
quando você pensa em tal longanimidade
da parte de Deus, você não a aprova, e pensa bem dela, que é não apenas digna e
excelente, mas excessivamente gloriosa? E você não aprova que Cristo tenha
morrido por você, e que Deus, através dele, lhe ofereça perdão e salvação? Ou você
desaprova isso? E você teria se agradaria mais de Deus, se não lhe tivesse
suportado, mas há muito tempo o tivesse liquidado em sua ira?
Quarto,
se tal atitude for excelente e digna de
aprovação em Deus, por que não é em você? Por que você não deveria imitá-lo? É
Deus bom demais em perdoar as injúrias? É menos odioso ofender o Senhor do céu
e da terra do que alguém ofender você? É bom ser perdoado, e orar a Deus por perdão,
contudo, você não estende isso aos seus semelhantes que lhe injuriaram?
Quinto,
você estaria disposto a daqui por
diante, que Deus não mais suportasse as suas injúrias e as ofensas que você
cometeu contra ele? Está disposto a ir e pedir a Deus para lidar com você no
futuro da mesma maneira como você lida com seus semelhantes?
Sexto, Cristo se virou contra os que o injuriavam e insultavam, e
lhes pisou quando esteve aqui em baixo? E não foi ele injuriado muito mais
gravemente do que você jamais foi? E você verdadeiramente não pisou o Filho de
Deus, mais do que foi pisado pelos outros? É algo mais provocador que os homens
lhe pisem e injuriem do que você pisar e injuriar a Cristo? Essas perguntas
podem responder suficientemente sua objeção.
Objeção
2. Mas você pode dizer mais, que aqueles que lhe injuriaram persistem nisso,
e não se arrependem, mais ainda continuam a fazê-lo. Mas que oportunidade
pode haver para a longanimidade, se a injúria não persistisse por muito tempo?
Se as injúrias são contínuas, pode ser o exato propósito, na providência, de
testar se você exercerá a longanimidade e a mansidão, e aquela tolerância que
foi mencionada. E Deus não o suportou quando você persistiu em ofendê-lo?
Quando foi obstinado, e voluntarioso, e perseverou nas suas injúrias contra
ele, cessou de exercer sua longanimidade sobre você?
Objeção
3. Mas você pode objetar, novamente, que seus inimigos serão encorajados a
persistirem nas suas injúrias; escusando-se ao dizer que se suportar a
injúria, será tão-somente injuriado ainda mais. Mas você não sabe isso, pois não
tem conhecimento do futuro, ou do coração dos homens. Além disso, Deus trabalhará
por você, se obedecer aos seus mandamentos; e ele é mais capaz de colocar um
fim à ira do homem do que você. Ele disse : “A mim me pertence a vingança; eu é
que retribuirei, diz o Senhor.” (Rm 12.19) Ele interveio maravilhosamente por Davi,
como fez por muitos de seus santos; e se você tão somente obedecer-lhe, ele
terá parte com você contra tudo o que se levante contra você. E, na observação
e experiência dos homens, geralmente se descobre que um espírito solitário e
manso põe fim às injúrias, enquanto um espírito vingativo não faz senão
provocá-la. Acalente, então, o espírito da mansidão longânima, e da tolerância,
e você possuirá na alma a paciência e a felicidade, e a ninguém será permitido
machucá-lo mais do que a sabedoria e bondade de Deus possa permitir.
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