sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

ESFORÇANDO-SE PELO REINO DOS CÉUS (1 de 4)

Lucas 16:16 “A Lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse tempo, vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça por entrar nele.
       Nessas palavras, podem-se observar duas coisas:
       Primeiro: em que consistia a obra e ofício de João Batista, isto é, em pregar o reino de Deus, preparar o caminho para sua introdução como sucessão da lei e dos profetas. Por Lei e Profetas, na passagem, parece se ter em vista a velha dispensação do Antigo Testamento, que foi recebida de Moisés e dos profetas.
       É dito que vigoraram até João. Não que as revelações dadas por eles estejam fora de uso desde então, porém a condição da igreja fundada e regulada, sob Deus, por eles, a dispensação da qual eram os ministros e de que a igreja dependia majoritariamente para receber sua luz, continuou plenamente até João. Ele pioneiramente começou a introduzir a dispensação do Novo Testamento, o estado evangélico da igreja, que com suas bênçãos e privilégios gloriosos, espirituais e eternos é frequentemente chamado de reino dos céus, ou reino de Deus. João Batista pregou que o reino de Deus estava próximo. “Arrependei-vos”, dizia, “porque o reino de Deus está próximo”. “Desde esse tempo” diz Cristo, “vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus”. Primeiro João Batista o pregou, depois Cristo e seus discípulos pregaram o mesmo: “Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” (Mt 4.17) Da mesma forma, os discípulos foram instruídos a pregar e a dizer: “e, à medida que seguirdes, pregai que está próximo o reino dos céus.” (Mt 10.7)
       Não foi João Batista, mas Cristo quem trouxe plenamente e de fato estabeleceu este reino de Deus. Mas ele, como precursor de Cristo, para preparar o caminho diante dele, fez a primeira coisa feita em direção a sua inauguração. A antiga dispensação foi abolida e a nova trazida gradualmente, como a noite progressivamente cessa, dando lugar ao crescente dia que a sucede. Primeiro, surge a estrela da manhã. Depois, segue-se a luz do sol, mas, a princípio, foscamente refletida no amanhecer do dia. Mas essa luz fica mais forte e brilha mais e mais, e as estrelas que serviam para a luz durante a noite precedente gradualmente se apagam, e suas luzes cessam, sendo agora desnecessárias até que, afinal, o sol surge e ilumina o mundo por sua própria luz direta, que fica mais forte à medida que sobe no horizonte, até que a própria estrela da manhã gradualmente desaparece. Isso condiz com o que João fala de si próprio em Jo 3.30: “Convém que ele cresça e que eu diminua.” João foi o precursor de Cristo e o arauto da luz do evangelho, do mesmo modo que a estrela da manhã é a precursora do sol. Ele teve o mais honroso ofício que quaisquer dos profetas. Os outros previram a vinda de Cristo, João o revelou como já vindo e teve a honra de ser o servo que veio imediatamente antes dele, e de fato o introduziu e foi mesmo o instrumento relacionado à sua solene inauguração, ao batizá-lo. Foi o maior dos profetas que veio antes de Cristo, assim como a estrela da manhã é a mais brilhante (Mt 11.11). Veio para preparar os corações dos homens para receber esse reino de Deus que Cristo estava prestes a revelar e erigir mais plenamente: “e habilitar para o Senhor um povo preparado” (Lc 1.17).
       Segundo: podemos observar em que consistiu seu sucesso, isto é, no fato de que, desde que iniciou seu ministério, todo homem se esforçava pelo reino de Deus que ele pregava. A grandeza do seu sucesso aparecia em duas coisas:
       1. Na generalidade dele com respeito aos objetos ou às pessoas em quem o sucesso se mostrava: todo homem. Esse é um termo de universalidade, mas não pode ser tomado como universal com respeito aos indivíduos, mas aos tipos, da mesma forma como esses termos universais são usados com frequência nas Escrituras. Quando João apareceu, houve um espantoso derramamento do Espírito Santo acompanhando sua pregação. Um despertamento incomum e uma preocupação com a salvação aparecia na mente de todos os tipos de pessoas, mesmo nas mais improváveis e naquelas de quem menos se esperaria tal coisa. Por exemplo, os fariseus, que eram excessivamente orgulhosos e autossuficientes, convencidos de sua própria sabedoria e justiça, que se encaravam como mestres e desprezavam que os ensinassem. E os saduceus, uma súcia de infiéis que negavam a ressurreição, anjos, espíritos, ou qualquer estado futuro. De modo que o próprio João parece surpreso em vê-los virem a ele, com tamanha preocupação por sua salvação, como em Mateus 3. 7: “Vendo ele, porém, que muitos fariseus e saduceus vinham ao batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura?” E, além desses, os publicanos, que eram dos tipos mais infames, vinham a ele inquirindo acerca do que deviam fazer para ser salvos. E os soldados que sem dúvida eram pessoas profanas, libertinas e dissolutas, faziam o mesmo questionamento: “Foram também publicanos para serem batizados e perguntaram-lhe: Mestre, que havemos de fazer? (Lc 3.12) “Também soldados lhe perguntaram: E nós, que faremos? E ele lhes disse: A ninguém maltrateis, não deis denúncia falsa e contentai-vos com o vosso soldo.” (Lc 3.14)
       2. Seu sucesso aparecia na maneira em que seus ouvintes buscavam o reino de Deus: esforçavam-se por ele. Em outro lugar é dito que eram violentos pelo reino dos céus, e o tomavam pela força. “E, desde os dias de João Batista até agora, se faz violência ao Reino dos céus, e pela força se apoderam dele.” [ARC]
       A doutrina que observo a partir dessas palavras é a seguinte:

Compete a todos que quiserem obter o reino de Deus esforçar-se por ele.

Ao discursar sobre esse assunto, eu:
       Primeiro: mostrarei qual é o modo de buscar a salvação que parece ser indicado na expressão esforçar-se pelo reino de Deus.
       Segundo, dar as razões por que compete a todos que quiserem obter o reino de Deus buscá-lo desse modo. Então, farei uma aplicação.
       I. Mostrarei que modo de buscar a salvação parece ser denotado por “esforçar-se pelo reino de Deus.”
       1. Essa expressão implica força de desejo. Em geral, os homens que vivem sob a luz do evangelho -e que não são ateus - desejam o reino de Deus, isto é, desejam ir para o céu e não para o inferno. A maior parte deles, porém, não está muito preocupada com isso, ao contrário, vive uma vida segura e descuidada. E alguns que estão muitos graus acima desses, estando sob os despertamentos do Espírito de Deus, ainda assim não estão se esforçando pelo reino de Deus. Mas, daqueles de quem se pode verdadeiramente afirmar isso, têm fortes desejos de sair de sua condição natural e obter um interesse em Cristo. Têm tal convicção da miséria do seu estado presente e da extrema necessidade de se obter um melhor que suas mentes estão, por assim dizer, possuídas e absortas em cuidados a esse respeito. Obter a salvação lhes é o desejo acima de todas as coisas no mundo. Esse cuidado é tão grande que em grande parte eclipsa os outros. Outrora, costumavam ter o fluxo de seus desejos por outras coisas, ou pode ser que estivessem divididos entre uma e outra. Mas quando vieram a atender à expressão no texto de esforçar-se pelo reino de Deus, essa preocupação prevaleceu acima de todas as outras. Tornou-as inferiores e, de certa maneira, monopolizou a preocupação da mente. Essa busca da vida eterna deve não apenas ser uma preocupação que rivaliza com outras em nossas almas, mas a salvação deve ser buscada como a única coisa necessária (Lc 10. 42) e como a única desejada (Sl 27. 4).
       2. Esforçar-se pelo reino dos céus denota sinceridade e firmeza de resolução. Deve haver força de resolução, acompanhada de força de desejo, como havia no salmista, no lugar há pouco referido: “Uma coisa peço ao SENHOR, e a buscarei”. A fim de que haja total engajamento da mente nesse assunto, ambos devem coexistir. Além do desejo pela salvação, deve haver uma sincera resolução nas pessoas para buscarem esse bem tanto quanto esteja em seu poder. Devem fazer tudo o que, no uso da máxima força, estiver ao seu alcance para atender a cada dever e resistir e militar contra toda forma de pecado, e em persistir nessa busca.
       Duas coisas são necessárias na pessoa para que tenha forte resolução: deve haver um senso da grande importância e necessidade da misericórdia buscada, e um senso da oportunidade de obtê-la, ou o encorajamento de buscá-la. 
       A força de resolução depende do senso que Deus dá no coração a respeito dessas coisas. Pessoas que não têm esse senso podem parecer a si mesmas resolutas. Podem, por assim dizer, forçar uma promessa a si mesmas e dizer consigo: “Buscarei enquanto eu viver, não descansarei enquanto não obtiver.” Mas nada fazem senão enganar a si mesmas. Seus corações não estão comprometidos, nem tomam essas resoluções como pensam que fazem. É mais uma resolução da boca que do coração, pois este não está fortemente inclinado a cumprir o que a boca diz. A firmeza de resolução reside na plenitude de disposição do coração em fazer o que está resolvido a fazer. Os que se esforçam pelo reino de Deus têm disposição de coração para fazer tudo o que for exigido e que esteja ao seu alcance, e nisso persistir. Têm não apenas sinceridade, mas constância de resolução. Não buscam com coração inconstante, por turnos ou acidentes, aqui e ali, mas a inclinação constante da alma é, se possível, obter o reino de Deus.
3. Por esforçar-se pelo Reino de Deus tem-se em mente a grandeza de esforço. É dito em Eclesiastes 9:10 que “tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças.” E essa é a consequência natural e necessária das duas coisas anteriormente mencionadas. Onde há força de desejo e firmeza de resolução haverá esforços correspondentes. Pessoas assim comprometidas em seus corações “se esforçarão por entrar pela porta estreita” e serão violentas pelos céus. Sua prática será conforme o conselho do sábio em Provérbios 2, no início: “Filho meu, se aceitares as minhas palavras e esconderes contigo os meus mandamentos, para fazeres atento à sabedoria o teu ouvido e para inclinares o coração ao entendimento, e, se clamares por inteligência, e por entendimento alçares a voz, se buscares a sabedoria como a prata e como a tesouros escondidos a procurares, então, entenderás o temor do SENHOR e acharás o conhecimento de Deus.” Aqui, a sinceridade no desejo e a firmeza de resolução são significadas por inclinar o ouvido à sabedoria e aplicar o coração ao entendimento, e a grandeza de esforço é denotada por clamar por conhecimento e levantar a voz por entendimento, buscá-lo como a prata, e procurá-lo como por tesouros escondidos. Esses desejos e resoluções e esses esforços andam juntos.
4. Esforçar-se pelo Reino dos céus implica em compromisso e prontidão que se relacionem diretamente à questão de se obter o reino de Deus. As pessoas podem encontrar-se em grande exercício e aflição de mente com relação ao estado de suas almas. Seus pensamentos podem estar grandemente comprometidos e tomados por assuntos de natureza espiritual, e ainda assim não estarem se esforçando pelo reino dos céus nem em direção a ele. O exercício de suas mentes não está diretamente relacionado à obra de buscar a salvação, em uma diligente atenção aos meios que Deus apontou para fazê-lo, mas em alguma outra coisa que vai além de seus interesses. Pode ser sobre os decretos e propósitos secretos de Deus, escrutinizando-os, buscando por sinais pelos quais possam determinar, ou ao menos conjecturar, quais sejam eles antes que Deus os faça conhecidos por suas realizações. Elas afligem suas mentes com temores de que não sejam eleitas, ou de que tenham cometido o pecado imperdoável, ou de que seu dia tenha passado e que Deus as tenha entregado à dureza judicial e final e jamais pretenda lhes mostrar misericórdia, sendo-lhes, portanto, inútil buscar a salvação. Ou então se confundem acerca da doutrina do pecado original, e outras doutrinas misteriosas da religião que estão acima de suas compreensões. Muitas pessoas que parecem estar em grande aflição acerca do estado eterno futuro se aprofundam em coisas semelhantes a essas que somente as deixam perplexas. Quando isso acontece, ainda que estejam muito preocupadas e comprometidas em suas mentes, não se pode dizer que estejam se esforçando pelo Reino de Deus, uma vez que seu exercício não está em seu dever, e sim naquilo que serve de obstáculo a ele. Se são violentas, apenas trabalham violentamente para confundir-se e colocar obstáculos em seus próprios caminhos. Elas não andam para frente. Ao invés de progredir, nada fazem senão perder tempo e, o que é pior, ao invés de lutar com os gigantes que estão no caminho para impedi-las de entrar em Canaã, gastam seus tempos e esforços brigando com as sombras que aparecem às margens da estrada.
       Logo, não podemos julgar o grau de esperança do caminho em que alguém se encontra, ou da sua probabilidade de sucesso em buscar a salvação, apenas pela grandeza da preocupação e aflição em que se encontram. Muitos têm desnecessárias aflições, sem as quais passariam muito melhor. Assim ocorre com frequência a pessoas tomadas pela indisposição da melancolia, de onde o adversário das almas costuma ganhar muito terreno. Porém, há pessoas no caminho mais provável de se obter o reino dos céus, quando o intento de suas mentes, e o engajamento de seus espíritos, está direcionado ao seu trabalho apropriado na matéria, e a inclinação total de suas almas é atender os meios de Deus, e fazer o que ele ordena e orienta. O apóstolo diz em 1 Co 9:26: “Assim luto, não como desferindo golpes no ar.” Nosso tempo é curto o suficiente. Há dificuldades reais e inimigos o suficiente para as pessoas encontrarem, e empregarem com eles todas as forças. Elas não precisam gastá-las lutando com fantasmas.
5. Por esforçar-se pelo reino de Deus é denotado um rompimento com a oposição e as dificuldades. Há na expressão um claro alerta de dificuldade. Se não houvesse oposição e o caminho fosse claro e aberto, não haveria necessidade alguma de se esforçar para prosseguir. Aqueles, portanto, que estão se esforçando pelo reino de Deus prosseguem com tal ousadia que rompem com as dificuldades que estão no seu caminho. Estão tão sedentos pela salvação que as coisas que desencorajam os outros e os detêm, fazendo-os retroceder, não lhes impedem, mas passam por elas. A resolução das pessoas pelo céu deve ser tal que, sehouver meios de obtê-lo, elas o obterão. Sejam esses meios difíceis ou fáceis, favoráveis ou não, se forem requisitos para a salvação, elas se ocuparão deles. Quando algo estiver presente a ser feito, a pergunta não deve ser: “É difícil ou fácil? É conforme minha inclinação e interesse carnal ou contrário a eles?”; mas sim: “É um meio requerido para obter um interesse em Jesus Cristo e na salvação eterna?” Assim o apóstolo em Fl 3:11, diz: “para, de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos.” Ele nos diz, no contexto, por quais dificuldades passou, tendo sofrido a perda de todas as coisas; estava voluntariamente conformado até mesmo à morte de Cristo, ainda que isso fosse acompanhado com tormento e ignomínia extremos.
  Aquele que está se esforçando pelo reino de Deus comumente encontra no caminho muitas coisas que são contrárias às suas inclinações naturais. Mas não é impedido pela cruz que está diante de si, porém a toma e a carrega. Suponhamos que haja algo que seja seu dever fazer, que, porém, seja contrário a seu temperamento natural, e por algum motivo seja enfadonho para ele. Suponha algo que não possa fazer sem que haja prejuízo ao seu status, ou que perceba que parecerá exótico e estranho aos olhos dos outros, e que o exporá ao ridículo e à reprovação; ou algo que será ofensivo a um conhecido e atrairá a sua má vontade, ou algo que será muito oposto ao seu próprio apetite carnal – ele se esforçará para vencer essas dificuldades. Tudo o que descobrir ser um peso que o impeça nessa carreira lançará fora de si, ainda que seja o peso de ouro ou pérolas, sim, seja até mesmo a mão ou o pé direitos que o ofendem, ele os arrancará, e não hesitará em arrancar o olho direito com suas próprias mãos. Essas coisas são dificuldades insuperáveis para os que não se encontram completamente comprometidos na busca da salvação. São pedras de tropeço que jamais conseguem sobrepujar. Mas isso não ocorre com aquele que está se esforçando pelo reino de Deus. Aquelas coisas com as quais, antes que fossem completamente despertos de sua segurança [carnal], costumavam ter longos palavreados e disputas com sua própria consciência, empregando razão carnal para inventar argumentos e meios de desculpa – agora ele as rejeita. Põe termo a essas disputas e raciocínios infindáveis e empurra violentamente através de toda dificuldade. O que quer que esteja no caminho, o céu é o que ele deve obter e obterá, não que o possa fazer sem dificuldade, mas se for possível [o fará]. Ele se encontra com a tentação: o diabo está sempre sussurrando em seus ouvidos, pondo distrações diante dele, exagerando as dificuldades do trabalho que tem pela frente, dizendo-lhe que este é insuperável e que jamais o conquistará, e tenta tudo o que for possível para desencorajá-lo. Ainda assim ele se esforça. Deus deu e mantém tal avidez de espírito pelo céu que o diabo não interromperá seu curso. Ele não tem tempo livre para emprestar o ouvido ao que o diabo tem a dizer.
Prossigo agora:
II. Para mostrar por que o reino do céu deve ser buscado desse modo. Deve ser buscado assim:
1. Devido à extrema necessidade que temos desse reino. Temos uma necessidade premente dele, pois sem o céu estamos completa e eternamente perdidos. Fora do reino de Deus não há segurança, não há lugar protegido. Esta é a única cidade de refúgio na qual estaremos seguros do vingador que persegue os ímpios. A vingança de Deus perseguirá, prevalecerá e destruirá eternamente os que não estiverem nesse reino. Todos os que estiverem sem este selo serão engolidos na inundação de um dilúvio ardente de ira. Podem ficar à porta e bater, clamando: “Senhor, Senhor, abra-nos!” Em vão. Serão rejeitados e Deus não terá compaixão deles. Serão deixados para sempre sem Ele. Sua terrível vingança os abaterá. Os demônios os possuirão e todo mal virá sobre eles; não haverá ninguém para se compadecer ou ajudar. Sua situação será completamente desesperadora e infinitamente dolorosa. Será um caso perdido, quando todas as ofertas de misericórdia e expressões da bondade divina forem finalmente retiradas, e toda esperança estiver perdida. Deus não terá nenhuma espécie de preocupação com o seu bem-estar. Não terá cuidado em salvá-los de qualquer inimigo ou males. Mas ele próprio será o terrível inimigo deles, e executará sua ira com fúria, e tomará vingança de uma maneira inexprimivelmente terrível.  Como estarão perdidos e arruinados os que estiverem nesse estado! Serão afogados na perdição, infinitamente mais profunda do que possamos imaginar. Pois quem conhece o poder da ira de Deus [Sl 90:11]? E quem conhece a miséria do pobre verme sobre quem essa ira é executada sem misericórdia?
2. Devido à exiguidade e incerteza da oportunidade de entrar nesse reino. Quando alguns dias se passarem, toda oportunidade desaparecerá. Nosso dia é limitado. Deus fixou nossos limites e não o conhecemos. Enquanto as pessoas estiverem fora desse reino estão em perigo a cada momento de serem tomadas pela fúria. Não sabemos o momento em que passaremos dessa linha, além da qual não há obra, projetos, conhecimento ou sabedoria. Portanto devemos fazer o nosso dever com todas as nossas forças (Ec 9.10).
3. Devido à dificuldade de entrar no reino de Deus. Há inúmeras delas pelo caminho, de tipos que poucos vencem. A maior parte que tenta não tem resolução, coragem, ousadia e constância o suficiente, mas falham, desistem e perecem. As dificuldades são muitas e grandes demais para os que não se esforçam violentamente. Nunca prosseguem, mas ficam pelo caminho, voltam, e caem em ruína. Mt 7.14: “Porque estreita é a porta, e apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela. Lc 13.24: “Respondeu-lhes: Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não poderão.”
4. Devido à possibilidade de obtê-lo. Embora seja acompanhada de tanta dificuldade, contudo, não é coisa impossível: “Arrepende-te, pois, da tua maldade e roga ao Senhor; talvez te seja perdoado o intento do coração.” (At 8.22) “Disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade.” (2 Tm 2.25). Seja qual for o grau de pecado de alguém, e quaisquer que sejam suas circunstâncias, há, apesar de tudo, uma possibilidade de salvação. Ele próprio é capaz e Deus pode realizá-la e tem misericórdia suficiente para isso. E há provisão suficiente feita por Cristo, que Deus pode fazer em harmonia com a honra de sua majestade, justiça e verdade. De modo que não há falta nem de suficiência em Deus, nem de capacidade no pecador para que isso aconteça. O maior e mais vil dos pecadores, o mais cego e sugo, o de coração mais endurecido é um sujeito capaz da luz e graça salvadoras. Visto que há tamanha necessidade de obter o reino de Deus, e tempo tão escasso, e tamanha dificuldade, contudo, havendo a possibilidade, ela pode bem nos induzir ao esforço (Jn 3.8,9).
5. É adequado que o reino do céu seja buscado assim, devido à sua grande excelência. Estamos dispostos a buscar coisas terrenas, de valor trivial, com grande diligência e através de muitas dificuldades. Portanto, certamente nos interessa buscar com grande avidez o que for de valor e excelência infinitamente maior. E como Deus bem pode esperar e requerer de nós que o busquemos de tal modo, a fim de obtê-lo!
6. Tal maneira de buscar é necessária para preparar as pessoas para o reino de Deus. Tal avidez e profundidade de esforços é o meio ordinário que Deus usa para trazer as pessoas ao reconhecimento de si mesmas; a uma contemplação de seus próprios corações; a um senso de seu abandono e ao desespero de sua força e justiça própria. E esse comprometimento e constância em buscar o reino dos céus preparam a alma para recebê-lo mais alegre e agradecidamente, e a mais altamente prezá-lo e valorizá-lo quando obtido. De modo que é por misericórdia a nós, bem como para a glória de seu próprio nome, que Deus apontou essa busca ávida como sendo o modo pelo qual concede o reino do céu.
APLICAÇÃO
O uso que farei dessa doutrina é o de exortação a todas as pessoas que estão sem Cristo para que se esforcem pelo reino de Deus. Alguns de vocês se perguntam quanto ao que farão? Vocês parecem desejar saber de que maneira a salvação deve ser buscada e qual o modo mais provável de obtê-la. Vocês ouviram agora a maneira que a santa Palavra de Deus instrui. Alguns estão buscando, mas não se pode dizer que estejam se esforçando pelo reino dos céus. Há muitos que no passado buscaram a salvação, mas não dessa maneira, e nunca a obtiveram, mas estão agora no inferno. Alguns a buscaram ano após ano, mas falharam e no fim pereceram. Foram surpreendidos com a ira divina e agora sofrem a terrível miséria da condenação, e não têm descanso nem de dia nem de noite, não tendo mais oportunidade de buscar, mas devem sofrer e ser miseráveis por todas as infindáveis eras da eternidade. Seja exortado, portanto, a não buscar a salvação do modo que eles buscaram, mas que o reino do céu sofra violência por você.
Aqui, primeiramente responderei a uma ou duas objeções, e então prosseguirei para dar algumas instruções de como se esforçar pelo reino de Deus.
Objeção 1: Alguns podem se apressar em dizer: “Não podemos fazer por nós mesmos. Essa força de desejo e firmeza de resolução de que tenho falado estão fora de alcance. Se eu me esforçar para ser resoluto e buscar com comprometimento de espírito, descobrirei que falharei. Meus pensamentos estão no presente longe da questão, sinto-me apático e minha resolução relaxada, não importa o que faça.
Resposta:
1. Embora o comprometimento de mente não esteja imediatamente em seu poder, contudo a consideração do que foi dito até aqui acerca da necessidade dele pode ser um meio de despertá-lo. É verdade, as pessoas jamais estarão plenamente comprometidas nessa questão a menos que seja pela influência de Deus. Porém, Ele influencia pessoas usando meios. As pessoas não são incitadas a uma completa seriedade sem algumas considerações que as movam em direção a isso. E se nada mais for feito a não ser sensibilizar as pessoas da necessidade da salvação, e de quão escasso e incerto é o tempo, mostrando-lhes, contudo, que têm uma oportunidade e que há possibilidade de obtê-la, nada mais precisarão para que se comprometam e decidam nessa matéria. Se vemos as pessoas relaxadas e indecisas é porque não consideraram suficientemente essas coisas.
2. Ainda que forte desejo e resoluções de mente não estejam em seu poder, contudo as dores do esforço estão. Está em seu poder sofrer no uso dos meios, na verdade, sofrer bastante. Você pode se afligir bastante e ser diligente em vigiar o coração e lutar contra o pecado. Ainda que haja todo tipo de corrupção no coração, continuamente pronta para operar, contudo você pode, a duras penas, vigiar e lutar contra essas corrupções. Está em seu poder com grande diligência responder à questão do seu dever relacionado a Deus e ao próximo. Está em seu poder atender a todas as ordenanças e a todos os deveres públicos e privados da religião, e isso com todas as forças. Seria uma contradição supor que alguém não possa fazer essas coisas com todas as forças que tem, embora não possa fazê-las com mais força do que tem. A apatia e inércia do coração e a indolência de disposição não impedem os homens de serem capazes de se esforçar, ainda que os impeçam de exercer suas vontades. Uma das coisas onde pode se mostrar o seu labor é na luta contra sua própria apatia. O fato de os homens terem o coração morto e inerte não justifica que não possam se esforçar; longe disso, é o que dá ocasião para o esforço. Essa é uma das dificuldades no caminho do dever, contra a qual as pessoas devem lutar, e que dá ocasião à luta e ao labor. Se não houvesse dificuldades acompanhando a busca da salvação não haveria ocasião para a luta, uma pessoa não teria nada contra o que lutar. Há, de fato, uma enorme porção de dificuldade atendendo a todos os deveres requeridos daqueles que querem obter o reino dos céus. É extremamente difícil guardar os pensamentos; é muito difícil considerar coisas da maior importância de maneira séria, ou com bons propósitos. É difícil ouvir, ou ler, ou orar com atenção. Mas o fato de serem difíceis não justifica que não se deva lutar com elas, ao contrário, deve-se lutar exatamente porque são difíceis. Pois o que há senão dificuldades para aquele que deve lutar ou brigar em qualquer assunto ou negócio? A prontidão de mente e a diligência de esforço tendem a promover uma à outra. Aquele que tem um coração sinceramente comprometido se esforçará; e o que é diligente e laborioso em todo dever provavelmente não demorará muito antes que descubra que a sensibilidade de seu coração e sinceridade de espírito [foram] grandemente aumentadas.
Objeção 2Alguns podem objetar que, se estiverem dispostos e se esforçarem grandemente estarão em perigo de confiar no que fazem; têm medo de fazer seu dever, pois temem tomá-lo como justiça [própria].
Resposta. Comumente não há um tipo de pessoa que busque [o reino dos céus] que confie mais no que faz do que os preguiçosos e apáticos. Ainda que todos os que buscam a salvação e ainda não foram objetos de completa humilhação de fato confiem em sua justiça própria, contudo alguns confiam mais plenamente que outros. Alguns, ainda que confiem em sua justiça própria, não estão satisfeitos com ela. E os que estão mais incomodados na sua autoconfiança (e, portanto, no caminho mais provável para se verem livres dela) não são dos tipos que procedem em um caminho negligente de busca, mas são os mais sinceros e plenamente comprometidos. Isso ocorre em parte por que desse modo a consciência é mantida mais sensível. Uma consciência desperta não descansará tão relaxadamente nos deveres morais e religiosos, como ocorre com a menos desperta. A consciência do buscador apático em grande medida ficará satisfeita e relaxada com suas próprias obras e realizações, porém quem está inteiramente desperto não pode ser acalmado ou pacificado com coisas semelhantes a essas. Nesse caminho, as pessoas ganham muito mais conhecimento de si e familiaridade com os próprios corações do que no caminho da busca negligente e descuidada, pois naquele têm muito mais experiência de si mesmas. É a experiência de nós mesmos e o descobrir de quem nós somos que Deus geralmente usa como o meio para nos afastar de toda autodependência. Mas não há caminho mais rápido para os homens adquirirem familiaridade consigo mesmos do que neste da ávida busca. Os que estão nesse caminho têm mais para se preocupar do que os outros, ao pensarem sobre seus pecados e vigiarem estritamente a si mesmos, e ao lidarem com seus próprios corações. Essas pessoas têm mais experiência de sua própria fraqueza do que aquelas que não exercem e testam sua força e, desse modo, irão em breve se ver mortas no pecado. Essa pessoa, embora tenha disposição para continuamente voar em direção à própria justiça, contudo em nada acha descanso; ela vaga de um lugar para outro, buscando algo para acalmar sua consciência inquieta. É levada de um refúgio para outro, da montanha para a colina, buscando descanso e não achando. Portanto, em breve descobrirá que não há descanso a ser achado, nem confiança a ser posta em nenhuma criatura.