terça-feira, 30 de junho de 2015

Tentação e Livramento - Parte 2


SEÇÃO I
Por que devemos evitar as coisas que tendem ao pecado
Assim fez José, não apenas se recusou a realmente cometer impureza com sua patroa, que o provocara, mas se recusou a ficar lá, onde pudesse estar no caminho da tentação (v. 10). Recusou-se a estar com ela e a permanecer ali. E, no texto, lemos que “saiu, fugindo para fora.” (v. 12) Não ficaria de maneira nenhuma em sua companhia. Não seria pecado se José permanecesse na casa onde sua patroa estava, mas, nestas circunstâncias, isso o exporia ao pecado. Ele tinha consciência que tinha um coração corrupto, que tendia a traí-lo ao pecado; portanto, de maneira nenhuma ficaria no caminho da tentação, mas apressadamente fugiria, correria do lugar do perigo. Uma vez que estava exposto ao pecado nessa casa, fugiu dela com tanta pressa quanto teria se ela estivesse em chamas, ou repleta de inimigos com espadas afiadas para estocá-lo no coração. Quando ela o tomou pelas vestes, ele as deixou em suas mãos; preferiu perdê-las a permanecer um só momento lá, onde estaria em tamanho perigo de perder sua castidade.
Eu disse que as pessoas devem evitar as coisas que expõem ao pecado até onde for possível, porque é possível que as pessoas sejam chamadas a se expor à tentação. Quando isso ocorrer, podem esperar por fortalecimento e proteção divinas na tentação.
Pode ser o dever indispensável de um homem exercer um ofício ou trabalho acompanhado com uma grande quantidade de tentação. Assim, ordinariamente um homem não deveria correr para a tentação de ser perseguido pela causa da verdadeira religião, para que a tentação não lhe seja dura demais. Mas deve evitá-la, tanto quanto puder. Desse modo Cristo ordena a seus discípulos: “Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra.” (Mt 10.23)
Contudo, pode ser o caso que um homem não foi chamado para fugir da perseguição, mas sofrer o risco de tal provação, confiando em Deus para sustentá-lo nela. Ministros e magistrados podem ser obrigados a continuar com seu povo em tais circunstâncias, como diz Neemias: “Homem como eu fugiria?” (Nm 6.11) Da mesma maneira ocorreu com os apóstolos. Podem até mesmo ser chamados para ir ao meio dela, àqueles lugares onde não podem sensatamente esperar outra coisa senão encontrar-se com essas tentações. Assim Paulo subiu a Jerusalém, onde sabia de antemão que “me esperam cadeias e tribulações.” (At 20.23)
Da mesma forma, em alguns outros casos, a necessidade do momento pode exigir que as pessoas se comprometam em alguns negócios que são peculiarmente acompanhados com tentações. Mas quando isso ocorre estão, na realidade, minimamente expostas ao pecado; pois os mais seguros são os que estão no caminho do dever: “Quem anda em integridade anda seguro.” (Pv 10.9) Embora haja inúmeras coisas pelas quais possam ter extraordinárias tentações nos assuntos em que se empenharem, contudo, se tiverem uma vocação clara, não é presunção esperar o suporte e a preservação divina.
Mas expor-se desnecessariamente às tentações e fazer aquelas coisas que tendem ao pecado é injustificável e contrário a esse exemplo excelente diante de nós. E que deveríamos evitar não apenas aquelas coisas que são, em si mesmas, pecaminosas, mas também as coisas que levam e expõem ao pecado, evidencia-se pelos seguintes argumentos.
1. É muito evidente que deveríamos fazer uso de nossos máximos esforços para evitar o pecado. Ora, isso é inconsistente com a prática desnecessária daquelas coisas que expõem e levam ao pecado. Quanto maior é qualquer mal, maior o cuidado e mais diligente o esforço que se requer para evitá-lo. Nosso maior cuidado  é proporcional a nossa percepção da grandeza e terror dos males. Portanto, o maior dos males requer o maior e mais elevado cuidado para evitá-lo.
  O pecado é um mal infinito, pois é cometido contra um Ser infinitamente grande e excelente; é, pois, uma violação de obrigação infinita. Portanto, conquanto seja grande nosso cuidado para evitar o pecado, não pode ser mais do que proporcional ao mal que evitaremos. Nosso cuidado e esforço não podem ser infinitos, como é o mal do pecado; mas, ainda assim, deveria ser até ao limite de nossa força. Deveríamos usar cada método que tende a evitar o pecado. Isto é evidente para a razão. E não apenas a ela, mas também é positivamente requerido de nós na palavra de Deus: “Tende cuidado, porém, de guardar com diligência o mandamento e a lei que Moisés, servo do SENHOR, vos ordenou: que ameis o SENHOR, vosso Deus, andeis em todos os seus caminhos, guardeis os seus mandamentos, e vos achegueis a ele, e o sirvais de todo o vosso coração e de toda a vossa alma.” (Js 22.5) “Guardai, pois, cuidadosamente, a vossa alma...para que não vos corrompais.” (Dt 4.15,16) “Guarda-te, não te enlaces com imitá-las, após terem sido destruídas diante de ti.” (Dt 12.30) “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza.” (Lc 12.15) “Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia.” (1 Co 10.12) “Tão somente guarda-te a ti mesmo e guarda bem a tua alma.” (Dt 4.9) Estes e muitos outros textos semelhantes das Escrituras, claramente requerem de nós a máxima diligência e cuidado possíveis para evitar o pecado.
Mas, como se pode dizer para alguém que use a máxima diligência e cuidado possíveis para evitar o pecado, se essa pessoa voluntariamente faz aquelas coisas que naturalmente expõem e levam ao pecado? Como se pode dizer a alguém que com o máximo cuidado possível evite um inimigo, se essa pessoa voluntariamente se coloca no seu caminho? Como se pode dizer a alguém que use o máximo cuidado possível para preservar a vida de seu filho, se essa pessoa permite que a criança vá até a beira de precipícios ou buracos; ou brinque às margens de um grande abismo; ou passeie em uma floresta assombrada por animais predadores?
2. É evidente que deveríamos evitar as coisas que expõem e levam ao pecado, pois um senso devido da malignidade do pecado e um ódio justo dele necessariamente terão este efeito sobre nós, para fazer-nos assim proceder. Se estivéssemos devidamente sensíveis da natureza maligna e terrível do pecado teríamos sobre nossas almas enorme horror a ele. Devemos odiá-lo mais do que a morte, e temê-lo mais do que o próprio diabo, e receá-lo assim como receamos a condenação. Ora, os homens naturalmente esquivam-se das coisas que temem; e evitam as coisas que, na sua apreensão, os deixam expostos. De modo semelhante, uma criança que ficou grandemente horrorizada com a vista de uma fera selvagem, de modo algum será persuadida a se aventurar em lugares onde perceba que se colocará em seus caminhos.
Assim como o pecado em sua própria natureza é infinitamente odioso, também em sua tendência natural é infinitamente terrível. É a tendência de todo pecado arruinar eternamente a alma. Todo pecado, por natureza, carrega consigo o inferno! Portanto, todo pecado deveria ser tratado por nós como trataríamos uma coisa que seja infinitamente terrível. Se o pecado de alguém, mesmo o menor dos pecados, não traz necessariamente consigo a ruína eterna, isso se deve tão somente à livre graça e misericórdia de Deus para conosco, e não à natureza e tendência do pecado em si.
Mas certamente não deveríamos tomar menos cuidado em evitar o pecado, ou tudo aquilo que leva a ele, por causa da liberalidade e grandeza da misericórdia de Deus por nós, pela qual há esperança de perdão. Isso seria, de fato, um abuso muito ingrato e vil da misericórdia. Fosse-nos dado a conhecer que, se alguma vez voluntariamente cometêssemos qualquer ato particular de pecado, seríamos condenados sem qualquer remédio ou escape, não seríamos extremamente temerosos de cometê-lo? Não seríamos muito vigilantes e cuidadosos em permanecer a maior distância desse pecado e de qualquer coisa que pudesse nos expor a ele, ou que tivesse alguma tendência em atiçar nossas luxúrias, ou nos trair para cometermos esse ato de pecado? Consideremos, então, que, embora o próximo ato voluntário de pecado conhecido não necessária e inevitavelmente resulte em condenação certa, contudo certamente a merece. Por ele merecemos, de fato, ser rejeitados, sem qualquer remédio ou esperança; e é apenas devido à livre graça que esse pecado não é certa e irremediavelmente seguido com tal punição. E seremos culpados de abuso tão vil da misericórdia de Deus por nós, a ponto de ela nos encorajar a mais ousadamente nos expor ao pecado?
3. É evidente que devemos não apenas evitar o pecado, mas também as coisas que expõem e levam a ele, pois é desta maneira que agimos quanto às coisas que pertencem ao nosso interesse temporal.
Os homens evitam não apenas aquelas coisas que são o desastre e a ruína de seus interesses temporais, mas também as coisas que tendem ou expõem a isso. Porque amam suas vidas temporais, não apenas realmente evitarão o suicídio, mas são bastante cuidadosos em evitar aquelas coisas que trazem perigo às suas vidas, embora nem sempre saibam se é certo que possam escapar. São cuidadosos em não atravessar rios e águas profundas sobre o gelo derretido, embora não saibam com certeza se não cairão e se afogarão. Não apenas evitarão aquelas coisas que seriam elas mesmas a ruína de suas propriedades – como pôr fogo em suas casas, e queimá-la totalmente com suas posses; pegar seu dinheiro e atirá-lo ao mar, etc. – mas cuidadosamente evitam aquelas coisas pelas quais suas propriedades são expostas. Vigiam-nas; são cuidadosos em escolher seus parceiros de negócios; são vigilantes que não sejam logrados em seus negócios, e procuram não se expor a pessoas tratantes e fraudulentas.
Se alguém estiver doente de uma enfermidade perigosa, cuida de evitar tudo que tende a agravar a doença; não apenas aquilo que sabe ser mortal, mas outras coisas que teme lhe possam ser prejudiciais. Os homens, por este modo, são afeitos a cuidar de seu interesse temporal. Portanto, se não formos tão cuidadosos em evitar o pecado, como somos em evitar o prejuízo de nosso interesse temporal, isso evidenciará uma disposição despreocupada com respeito ao pecado e ao dever; ou que não nos importamos tanto com o fato de pecarmos contra Deus. A glória de Deus é certamente de tanta importância e cuidado quanto nosso interesse temporal. É certo que deveríamos ser tão cuidadosos em não nos expor a pecar contra a Majestade do céu e terra, quanto os homens são propensos a cuidar de algumas poucas libras. Na verdade, estas últimas são apenas bagatelas comparadas com a primeira.
4. Somos afeitos a proceder desse modo pelos nossos queridos amigos terrenos.
Não somos apenas cuidadosos daquelas coisas que diretamente ameace a destruição de suas vidas, ou o seu prejuízo e calamidade. Mas somos cuidados em evitar as coisas que mesmo remotamente tendam a isso. Somos cuidadosos em prevenir todas as ocasiões que lhes representem perda; somos vigilantes contra aquilo que tende, de qualquer forma, a privá-los de seu conforto ou bom nome. E a razão é que eles nos são muito queridos. Desta forma, os homens são afeitos a ser cuidadosos do bom nome de seus filhos, e temem a aproximação de qualquer dano a que receiam estejam ou possam estar expostos. E ficaríamos muito tristes se nossos amigos não fizessem o mesmo conosco.
Certamente, deveríamos tratar Deus como um amigo querido. Deveríamos agir com relação a ele como quem lhe tem um amor sincero e cuidado não fingido. Assim, devemos vigiar e ser cuidadosos contra todas as ocasiões daquilo que é contrário a sua honra e glória. Se não for nossa índole e desejo assim o fazer, isso mostrará que, sejam quais forem nossas pretensões, não somos amigos sinceros de Deus, e não lhe temos verdadeiro amor. Se alguém nos tratasse desta maneira e não fosse cuidadoso de nossos interesses, ficaríamos ofendidos se esses tivessem professado amizade a nós; então, certamente, Deus pode justamente se ofender que não somos mais cuidadosos de sua glória.
5. Gostaríamos que Deus, em sua providência para conosco, não ordene aquelas coisas que tendem ao nosso prejuízo, ou exponha nossos interesses. Portanto, certamente deveríamos evitar aquelas coisas que levam ao pecado contra ele.
Desejamos e amamos ter a providência de Deus em relação a nós disposta de tal maneira que nosso bem estar seja assegurado. Homem algum ama ser exposto, viver na incerteza e em circunstâncias perigosas. Enquanto assim está, vive desconfortavelmente, pois vive em medo contínuo. Desejamos que Deus disponha as coisas a nosso respeito de tal maneira que possamos estar livre do temor do mal, e que mal algum se aproxime de nossas habitações; isso porque tememos a calamidade. Não amamos a aparência e aproximação desta, mas amamos que esteja a grande distância de nós. Desejamos que Deus nos seja como uma muralha de fogo ao nosso redor, para nos defender; e que nos cerque como as montanhas cercam o vale, para nos guardar de todo perigo ou inimigo, e que, desse modo, mal algum nos alcance.
Agora, isso nos mostra claramente que deveríamos, em nossa postura em relação a Deus, manter uma grande distância do pecado e de tudo o que expõe a ele, assim como desejamos que Deus, em sua providência conosco, mantenha a calamidade e a miséria a grande distância de nós, e não ordene que estas coisas exponham nosso bem estar.
6. Visto que devemos orar que não entremos em tentação, certamente não deveríamos nós mesmos correr para ela.
Esta é uma petição que Cristo nos orienta a fazer naquela forma de oração que ensinou aos discípulos: “Não nos deixe cair em tentação.” Quão inconsistentes seremos com nós mesmos se orarmos a Deus que não sejamos conduzidos à tentação, e, ao mesmo tempo, não formos cuidadosos em evita-la, mas nos conduzirmos a ela, fazendo aquelas coisas que levam e expõem ao pecado? Que autocontradição é para um homem orar a Deus que seja guardado daquilo que não toma cuidado algum em evitar! Orando que sejamos guardados da tentação, professamos a Deus que estar em tentação é algo a ser evitado; mas, ao correr para ela, mostramos que escolhemos o contrário, isto é, não evitá-la.
7. O apóstolo nos aconselha a evitar aquelas coisas que são em si mesmas lícitas, mas tendem a levar os outros ao pecado. Certamente, então, devemos evitar o que nos leva a nós mesmos ao pecado. O apóstolo aconselha: “Vede, porém, que esta vossa liberdade não venha, de algum modo, a ser tropeço para os fracos.” (1 Co 8.9) “Tomai o propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão.” (Rm 14.13) “Se, por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor fraternal. Por causa da tua comida, não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu.” (Rm 14.15) “Não destruas a obra de Deus por causa da comida. Todas as coisas, na verdade, são limpas, mas é mau para o homem o comer com escândalo. É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar ou se ofender ou se enfraquecer.” (Rm 14.20,21) Ora, se esta regra do apóstolo for conforme a Palavra de Cristo, como devemos supor, ou ao contrário deveríamos expurgar o que ele diz do cânon da Escritura, então, uma regra semelhantes obriga mais fortemente naquelas coisas que tendem a nos levar a nós mesmos ao pecado.
8. Há muitos preceitos da Escritura que direta e positivamente implicam que devemos evitar aquelas coisas que tendem ao pecado.
É exatamente isso que é ordenado por Cristo em Mateus 26.41, onde nos orienta a “Vigiar e orar, para que não entremos em tentação”. Mas, certamente, nos atirarmos à tentação é o oposto de vigiar contra ela. Somos ordenados a nos abster de toda aparência do mal, isto é, fazer com o pecado o mesmo que alguém faz com uma coisa cuja visão ou aparência abomine. Portanto, evitará qualquer coisa que se assemelhe com ela, e não se aproximará nem ficará a ela exposto.
Novamente, Cristo ordena que separemos de nós as coisas que são pedras de tropeço, ou ocasiões para o pecado, por mais queridas que nos sejam. “Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti”. (Mt 5.29)  “E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti”. (Mt 5.30) Pela mão direita que nos ofende, não quer dizer que ela nos cause dor; mas a palavra no original significa ser uma pedra de tropeço, isto é, corta-a, se tua mão direita se provar uma pedra de tropeço, ou ocasião para a queda, isto é, uma ocasião para o pecado.
As coisas que servem de ocasião para o pecado são chamadas de pedra de tropeço no Novo Testamento. Cristo nos diz que devemos evitá-las, por mais queridas que nos sejam, ainda que sejam tão caras quanto nossa mão ou olho direitos. Se houver qualquer prática que naturalmente tenda e exponha ao pecado, devemos nos livrar dela, ainda que nos seja extremamente amável, e estejamos muito relutantes em dispensá-la. Devemos fazê-los, ainda que seja tão contrário à nossa inclinação, como é cortar nossa própria mão direita, ou arrancar nosso olho direito, e isso pela dor da condenação; pois nos é declarado que se não o fizermos, devemos ir com as duas mãos e os dois olhos para o fogo do inferno.
Também Deus teve grande cuidado em proibir aos filhos de Israel aquelas coisas que tendiam a levar ao pecado. Por esta razão, proibiu que casassem com mulheres estrangeiras: “Nem contrairás matrimônio com os filhos dessas nações; não darás tuas filhas a seus filhos, nem tomarás suas filhas para teus filhos; pois elas fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do SENHOR se acenderia contra vós outros e depressa vos destruiria.” (Dt 7.3-4) Por essa razão, foram ordenados a destruir todas aquelas coisas que as nações de Canaã usaram em sua idolatria, e se alguém fosse inclinado à idolatria, deveria ser destruído sem piedade, ainda que fosse o mais querido e próximo dos amigos. Deveriam não apenas ser entregues, mas apedrejados; sim, eles próprios deveriam cair sobre eles e leva-los à morte, mesmo que fosse filho ou filha, ou um amigo do peito: “Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu amigo que amas como à tua alma te incitar em segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses, que não conheceste, nem tu, nem teus pais”. (Dt 3.6)
Ademais, o sábio nos adverte a evitar aquelas coisas que tendem e expõem ao pecado, especialmente o pecado da impureza: “Tomará alguém fogo no seio, sem que as suas vestes se incendeiem? Ou andará alguém sobre brasas, sem que se queimem os seus pés? Assim será com o que se chegar à mulher do seu próximo; não ficará sem castigo todo aquele que a tocar”. (Pv 6.27,29) A verdade aqui apresentada é: evite aqueles costumes e práticas que naturalmente tendem a provocar a luxúria.
E há muitos exemplos na Escritura, que têm a força de preceito, registrados não apenas por seu valor, mas para nossa imitação. A conduta de José é um desses, e a do Rei Davi é outro: “Disse comigo mesmo: guardarei os meus caminhos, para não pecar com a língua; porei mordaça à minha boca, enquanto estiver na minha presença o ímpio. Emudeci em silêncio, calei acerca do bem, e a minha dor se agravou.” (Sl 39.1,2) Até mesmo acerca do bem! Ou seja, estava tão vigilante com suas palavras, e guardado a tal distância de falar o que pudesse de qualquer modo levá-lo ao pecado, que evitava em certas circunstâncias, falar o que era em si mesmo lícito; para que não fosse traído em direção àquilo que fosse pecaminoso.
9. Um senso prudente de nossa fraqueza e exposição para ceder à tentação nos obriga a evitar aquilo que leva e expõe ao pecado.
Quem quer que se conheça e esteja sensível do quão fraco é sabe como seu coração está cheio de corrupção, esse mesmo que, como combustível, está pronto a pegar fogo e trazer a destruição sobre si; sabe o quanto há dentro de si que o inclina ao pecado, e como é incapaz de sustentar-se a si mesmo. Quem está sensível disso, e tem alguma preocupação com seu dever, acaso não será bastante vigilante contra qualquer coisa que possa levá-lo e expô-lo ao pecado? Por este motivo, Cristo nos orienta: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação”. (Mt 26.41) A razão é acrescentada: a carne é fraca! Aquele que, confiando em sua própria força, ousadamente aventura-se no pecado, entrando em tentação, manifesta grande presunção e uma insensibilidade embrutecida de sua própria fraqueza. “O que confia no seu próprio coração é insensato.” (Pv 28.26)
Os mais sábios e mais fortes, e alguns dos mais santos homens no mundo, foram derrubados por essas coisas. Assim foi com Davi; assim foi com Salomão: suas mulheres perverteram seu coração. Se pessoas tão eminentes por sua santidade quanto essas foram desse modo levadas ao pecado, certamente deve servir de aviso para nós. “Aquele que pensa estar de pé, veja que não caia.”



sexta-feira, 26 de junho de 2015

TENTAÇÃO E LIVRAMENTO - PARTE 1


A GRANDE TENTAÇÃO DE JOSÉ E SEU GRACIOSO LIVRAMENTO

Ele, porém, deixando as vestes nas mãos dela, saiu, fugindo para fora. (Gn 39. 12b)

Temos aqui, e no contexto, um relato do notável procedimento de José na casa de Potifar, que foi motivo tanto de sua grande aflição quanto de seu alto progresso e prosperidade na terra do Egito.
Lemos, no início do capítulo, como José, após ter sido cruelmente tratado por seus irmãos, e vendido ao Egito como um escravo, prosperou na casa de Potifar, que o havia comprado. José temia a Deus, portanto, Deus estava com ele, a ponto de influenciar o coração de seu senhor, que, ao invés de mantê-lo como um mero escravo, conforme o propósito original de sua compra, o fez seu mordomo e superintendente de toda a sua casa. Tudo o que tinha pôs em suas mãos, de tal maneira que somos informados no v. 6: “Potifar tudo o que tinha confiou às mãos de José, de maneira que, tendo-o por mordomo, de nada sabia, além do pão com que se alimentava.
Enquanto José estava nestas prósperas circunstâncias, encontrou-se em meio a grande tentação na casa de seu senhor. Lemos que, sendo um rapaz bonito de porte e de aparência, sua senhora pôs nele os olhos e o desejou, e usou toda sua arte para tentá-lo a cometer impureza com ela.
Com relação a essa tentação, e ao procedimento de José nela, muitas coisas são dignas de nota, particularmente:
Podemos observar como foi grande a tentação na qual esteve José. Deve ser levado em conta que ele estava, naquele momento, em sua juventude, uma época da vida em que as pessoas estão mais sujeitas a ser vencidas por tentações dessa natureza. E encontrava-se em um estado de inesperada prosperidade na casa de Potifar, o que tem a tendência de envaidecer as pessoas, especialmente as jovens, pelo que é comum que mais facilmente caiam diante das tentações.
Ademais, a superioridade da pessoa que deu ocasião à sua tentação a tornou ainda maior. Era sua patroa, e ele um servo dela. E também a maneira dela o tentar, pois não apenas se insinuava para ele, para fazê-lo suspeitar que poderia ser admitido a um relacionamento proibido com ela, mas diretamente lhe fazia propostas, manifestando-lhe claramente sua disposição. Assim, não havia aqui algo como uma suspeita da disposição da parte dela para o encorajar, mas uma manifestação de seu desejo para atiçá-lo. De fato, ela parecia bastante engajada na matéria. E não havia apenas seu desejo manifesto de provocá-lo, mas sua autoridade sobre ele para reforçar a tentação. Era sua patroa, e ele bem podia imaginar que, se recusasse totalmente se submeter, incorreria no seu desfavor, e ela, sendo a mulher do seu senhor, tinha poder para trabalhar em seu prejuízo, e tornar sua situação muito desconfortável na família.
E a tentação foi maior, pois ela não apenas o tentou uma vez, mas frequentemente, todos os dias (v. 10). Por fim, se tornou mais violenta com ele. Pegou-o pelas vestes, dizendo: Deita-te comigo.
A postura de José foi muito notável nessas tentações. Recusou, em absoluto, qualquer comprometimento. Não deu qualquer resposta que manifestasse que a tentação o houvesse vencido. Menos ainda hesitou ou deliberou quanto a ela. Não cedeu em nenhum grau, quer ao ato grosseiro que ela propunha, quer a algo que tendesse para ele, ou que pudesse de alguma maneira satisfazê-la em suas ímpias inclinações. E persistiu resoluto e inabalável sob as contínuas solicitações da mulher: “Falando ela a José todos os dias, e não lhe dando ele ouvidos, para se deitar com ela e estar com ela.” (v. 10) Ele evitou ao máximo até mesmo estar onde ela estava. E os motivos e princípios baseados nos quais agiu, e que foram manifestos pela sua resposta às solicitações da mulher, são notáveis.
Primeiramente, mostra-lhe como seria injurioso se agisse contra o seu senhor, se aquiescesse a sua proposta: “Tem-me por mordomo o meu senhor e não sabe do que há em casa, pois tudo o que tem me passou ele às minhas mãos. Ele não é maior do que eu nesta casa e nenhuma coisa me vedou, senão a ti, porque és sua mulher.” (Gn 39.8,9). Então, prossegue para informá-la do que, acima de tudo, o impedia de comprometer-se, isto é, que seria grande impiedade e pecado contra Deus: “Como, pois, cometeria eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?” Isso ele não faria de forma alguma, assim como não prejudicaria seu senhor. Mas, o que acima de tudo o influenciava nessa ocasião era o temor de pecar contra Deus. Por este motivo, persistiu em sua resolução até o fim.
No texto, temos um relato do seu comportamento na última e maior tentação da parte dela. Foi uma grande tentação, uma vez que ocorreu em um momento em que não havia ninguém na casa, exceto ele e sua patroa (v. 11). Houve uma oportunidade para cometer o fato no maior segredo. E, nesse momento, parece que ela foi ainda mais violenta que antes, pois o pegou pelas vestes, apossou-se dele, como se estivesse resoluta em atingir seu propósito.
Nessas circunstâncias, ele não apenas a recusou como fugiu dela, como teria feito se fosse alguém disposto a assassiná-lo. Fugiu como se fosse por sua vida. Ele assegurou-se não apenas de não se tornar culpado do fato, mas também de, por todos os modos, escapar da casa dela, onde estaria no caminho de sua tentação. Este comportamento de José está, sem dúvida, registrado para a instrução de todos nós. Portanto, das palavras ditas, observarei que é nosso dever não apenas evitar aquelas coisas que são em si pecaminosas, mas também, até onde for possível, aquelas que levam e expõem ao pecado.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A CARIDADE NOS DISPÕE A FAZER O BEM


A CARIDADE NOS DISPÕE A FAZER O BEM
A caridade é sofredora, é benigna.” (1 Co 13.4)

No último discurso a partir dessas palavras, foi mostrado que a caridade, ou amor cristão, é longânima, ou seja, nos dispõe a mansamente suportar as injúrias recebidas dos outros. Agora me proponho a mostrar que é bondosa ou, em outras palavras,
A CARIDADE, OU UM ESPÍRITO VERDADEIRAMENTE CRISTÃO, NOS DISPORÁ A LIVREMENTE FAZER O BEM AOS OUTROS.
Abordando esse ponto, irei (1) desvendar brevemente a natureza do dever de fazer o bem aos outros, e (2) mostrar que um espírito cristão nos disporá a isso.
I. Mostrarei brevemente a natureza do dever de fazer o bem aos outros.
Aqui, três coisas devem ser consideradas: o ato, fazer o bem; os objetos, ou aqueles a quem devemos fazer o bem; e o modo pelo qual deve ser feito, isto é, livremente.
1. O ato que é a matéria do dever, que é fazer o bem aos outros.
Há muitas maneiras pelas quais as pessoas podem fazer o bem às outras, e pelas quais estão obrigados a assim fazer, na medida em que tiverem oportunidade.
Primeiro, as pessoas podem fazer o bem às almas dos outros, que é o modo mais excelente de se fazer o bem. Os homens podem ser, e com frequência são, os instrumentos do bem espiritual e eterno dos outros, e quando alguém assim procede é o instrumento de maior bem a eles do que se lhes houvesse dado todas as riquezas do universo.
Podemos fazer bem às almas dos outros esforçando-nos para instruir os ignorantes, e conduzi-los ao conhecimento das grandes coisas da religião, aconselhando-os e admoestando-os, animando-os ao seu dever e a um oportuno e completo cuidado pelo bem-estar de suas almas; apresentando-lhes bons exemplos, o que de tudo é o mais necessário e, geralmente, o meio mais eficaz de todos na promoção do bem de suas almas. Esse exemplo deve acompanhar os outros meios de se fazer o bem às almas dos homens, tais como a instrução, aconselhamento, avisos e reprovações, sendo necessário para dar força a esses meios, e torná-los eficazes. São mais promissores em torná-los efetivos do que qualquer outra coisa, e, sem ele, é provável que aqueles outros meios sejam vãos.
Os homens podem fazer o bem às almas das pessoas viciosas, sendo os meios no resgate deles de suas condutas viciosas; ou às almas dos que negligenciam o santuário, persuadindo-os a irem à casa de Deus; ou às almas dos pecadores seguros e descuidados, conscientizando-os de sua miséria e perigo. Podem ser, assim, os instrumentos no seu despertamento, e meios da sua conversão, e em trazê-los para o lar de Cristo. Assim, podem pertencer ao número daqueles a respeito de quem lemos que “a muitos conduzem à justiça” (Dn 12.3) e que “resplandecerão como o fulgor do firmamento.
Os santos também podem ser os instrumentos do conforto e estabelecimento uns dos outros, do fortalecimento mútuo na fé e na obediência; da vivificação, animação e edificação; do livramento mútuo das disposições débeis e mortas, e do auxílio nas tentações, em direção à vida divina; do aconselhamento uns dos outros em casos duvidosos e difíceis; do encorajamento mútuo sob trevas ou em provação; e, em geral, promovendo a alegria e força espiritual uns dos outros, sendo assim mutuamente auxiliadores na sua jornada para a glória.
Segundo, as pessoas podem fazer o bem a outras nas coisas exteriores, e relativas a este mundo. Podem ajudar os outros nas suas dificuldades e calamidades exteriores, pois há inúmeros tipos de calamidades temporais a que está sujeita a humanidade, nas quais permanece em bastante necessidade de ajuda de seus amigos e semelhantes. Muitos têm fome, ou sede, ou são estrangeiros, estão nus, doentes, ou em prisão (Mt 25.35,36), ou sofrem de alguma outra forma. A todos esses devemos ministrar.
Podemos fazer o bem aos outros promovendo suas condições ou propriedades materiais [substance] exteriores; ou apoiando seu bom nome, promovendo, assim, sua estima e aceitação entre os homens; ou por qualquer coisa que possa verdadeiramente somar a seu conforto e felicidade no mundo, seja na palavra bondosa, seja na obra discreta e benevolente. Esforçando-nos, assim, para lhes fazer o bem externamente, estamos na maior vantagem de fazer bem às suas almas; pois quando nossas instruções, conselhos, avisos e bons exemplos são acompanhados com essa bondade exterior, esta última tende a abrir o caminho para o melhor efeito das daqueles primeiros, e dar-lhes sua plena força, e a levar aquelas pessoas a apreciarem nossos esforços quando buscarmos seu bem espiritual.
Assim, podemos contribuir para o bem dos outros de três modos: dando-lhes as coisas de que precisam e que possuímos; fazendo por eles, e esforçando-nos para ajudá-los e promover seu bem estar; e sofrendo por eles, auxiliando-lhes a suportar seus fardos, fazendo tudo em nosso poder para tornar esses fardos leves. Em cada um desses modos, o cristianismo requer que façamos o bem aos outros. Ele requer que demos aos outros, “dai, e dar-se-vos-á” (Lc 6.38). Requer que façamos pelos outros, e trabalhemos por eles: “Porque, vos recordais, irmãos, do nosso labor e fadiga; e de como, noite e dia labutando para não vivermos à custa de nenhum de vós, vos proclamamos o evangelho de Deus.” (1 Ts 2.9) e : “Porque Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com o seu nome, pois servistes e ainda servis aos santos.” (Hb 6.10) E requer de nós que, se for necessário, soframos pelos outros: “Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo.” (Gl 6.2) E: “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos.” (1 Jo 3.16) De modo que, de todas essas maneiras, as Escrituras requerem que façamos o bem a todos. Passo então a falar,
2. Dos objetos deste ato, ou daqueles a quem devemos fazer o bem.
As Escrituras com frequência referem-se a eles pela expressão “nosso próximo”, pois o dever diante de nós é implicado no mandamento de que amemos nosso próximo como a nós mesmos. Mas aqui, talvez, estejamos apressados a, como o jovem advogado que veio a Cristo (Lc 10.29), perguntar: “Quem é nosso próximo?” E assim como a resposta de Cristo lhe ensinou que o samaritano era próximo dos judeus, embora os samaritanos e judeus estimassem uns aos outros como vis e malditos, e como amargos inimigos, também podemos ser ensinados sobre quem são aqueles a quem devemos fazer o bem, em três aspectos:
Primeiro, devemos fazer o bem tanto ao bom quanto ao mau. Isso devemos fazer, se quisermos imitar nosso Pai celeste, pois “ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos.” (Mt 5.45) O mundo está cheio de tipos variados de pessoas, algumas boas, outras más; devemos fazer o bem a todas. Devemos, na realidade, em especial, “fazer o bem aos da família da fé”, ou que tenhamos razão, no exercício da caridade, de reputar como santos. Mas, ainda que devamos abundar no exercício da beneficência a eles, o bem que fazemos não deve ser confinado a eles, mas devemos fazer o bem a todos os homens, quando tivermos oportunidade.
Enquanto vivermos neste mundo, devemos esperar encontrar alguns homens de qualidade muito más, e de inclinações e práticas odiosas. Alguns são orgulhosos, outros imorais, invejosos, profanos, injustos ou severos, e alguns desprezam a Deus. Mas quaisquer uma ou todas essas más qualidades não deve impedir nossa beneficência, ou prevenir que lhes façamos o bem enquanto tivermos oportunidade. Por esse exato motivo é que devemos, ao contrário, ser diligentes em beneficiá-los, para que os ganhemos para Cristo; e em especial devemos ser diligentes para beneficiá-los nas coisas espirituais.
Segundo, devemos fazer o bem tanto a amigos quanto a inimigos.
Somos obrigados a fazer o bem aos nossos amigos, não apenas pela obrigação sob a qual nos encontramos de lhes fazer o bem na condição de nossos semelhantes, e de pessoas feitas à imagem de Deus, mas pela obrigação da amizade, gratidão e da afeição que lhes devotamos. Também somos obrigados a fazer o bem aos nossos inimigos, pois nosso Salvador diz: “amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem.” (Mt 5.44) Fazer o bem aos que nos prejudicam é a única retaliação que incumbe a nós, como cristãos, pois somos ensinados a “Não tornar a ninguém mal por mal” (Rm 12.17) mas, ao contrário, “a vencer o mal com o bem” (Rm 12.20); e novamente está escrito: “Evitai que alguém retribua a outrem mal por mal; pelo contrário, segui sempre o bem entre vós e para com todos;” (1 Te 5.15) e ainda: “não pagando mal por mal ou injúria por injúria; antes, pelo contrário, bendizendo, pois para isto mesmo fostes chamados, a fim de receberdes bênção por herança.” (1 Pe 3.9)
Terceiro, devemos fazer o bem tanto aos agradecidos quanto aos ingratos . A isso somos obrigados pelo exemplo de nosso Pai celeste, pois ele “é benigno até para com os ingratos e maus.” (Lc 6.35) E o mandamento é que, “sede misericordiosos, como ele é misericordioso”. Muitos fazem objeção a fazermos o bem aos outros, dizendo: “Se eu fizer, jamais me agradecerão; pela minha bondade, me recompensarão com abuso e injúria.” Assim, estão prontos a se escusarem do exercício da bondade, especialmente àqueles que podem ter se lhes mostrado ingratos. Mas essas pessoas não olham o suficiente para Cristo, e, ou mostram sua falta de familiaridade com os preceitos do cristianismo, ou sua indisposição de acalentar seu espírito.
Tendo assim falado do dever de fazer o bem, e das pessoas a quem devemos fazê-lo, passo, como proposto, a falar,
3. Da maneira pela qual devemos fazer o bem aos outros. Ela está expressa na única palavra “livremente.” Isso parece estar implicado nas palavras do texto; pois ser bondoso é ter disposição para livremente fazer o bem. Qualquer bem que seja feito, não há propriamente bondade no seu autor, a menos que seja feito livremente. E fazer o bem livremente implica três coisas:
Primeiro, que a nossa prática do bem não seja em um espírito mercenário. Não devemos fazê-lo por causa de qualquer recompensa recebida ou esperada daquele a quem fazemos o bem. O mandamento é: “Fazei o bem e emprestai, sem esperar nenhuma paga.” (Lc 6.35) Frequentemente, os homens farão o bem aos outros esperando receber o mesmo tanto novamente; mas devemos fazer o bem aos pobres e necessitados, de quem nada podemos esperar em retorno. O mandamento de Cristo é: “Quando deres um jantar ou uma ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos ricos; para não suceder que eles, por sua vez, te convidem e sejas recompensado. Antes, ao dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-aventurado, pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na ressurreição dos justos.” (Lc 14.12-14).
Para que a nossa prática do bem seja livre, e não mercenária, é necessário que o que fazemos seja feito não por causa de qualquer bem temporal, ou para promover nosso interesse temporal, ou honra, ou lucro, mas devido ao espírito de amor.
Segundo, que a nossa prática do bem seja livre é requisito para que o façamos alegre ou sinceramente, e com verdadeira boa vontade para com aquele que beneficiaremos. O que é feito sinceramente, é feito pelo amor; e o que é feito pelo amor, é feito com prazer, e não com murmuração ou má vontade e relutância de espírito. “Sede hospitaleiros”, diz o apóstolo (1 Pe 4.9), “sem murmuração”. E Paulo diz: “Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria.” (2 Co 9.7) Esse requisito ou qualificação na nossa prática do bem é bastante insistido nas Escrituras. “O que contribui,” diz o apóstolo “faça com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia, com alegria.” (Rm 12.8) E Deus dá uma responsabilidade estrita: “Não seja maligno o teu coração, quando lho deres.” (Dt 15.10) E, em uma palavra, a própria ideia de dar de boa vontade é apresentada por toda a Bíblia como implicando que demos com um espírito cordial e alegre. Dar livremente também implica,
Terceiro, que o façamos liberal e abundantemente. Não devemos ser escassos e poupadores em nossas dádivas ou esforços, mas devemos ter os corações e as mãos abertas. Devemos “abundar em toda boa obra” (2 Co 9.8,11), “enriquecendo-vos, em tudo, para toda generosidade”. Assim, Deus requer que quando dermos ao pobre, devamos “lhe abrir de todo a mão.” (Dt 15.8) E nos é dito que “a alma generosa prosperará.” (Pv 11.25) O apóstolo queria que os coríntios fossem abundantes em suas contribuições aos santos pobre na Judeia, assegurando-lhes que “aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia com fartura com abundância também ceifará.” (2 Co 9.6)
Tendo assim explicado a natureza deste dever de livremente fazer o bem aos outros, prossigo agora para mostrar,
II. Que um espírito cristão nos disporá a assim fazer o bem aos outros. E isso aparece a partir de duas considerações:
1. A coisa principal naquele amor, que é a soma do espírito cristão, é a benevolência ou a boa vontade com os outros. Já vimos o que é o amor cristão, e como é variadamente denominado de acordo com seus vários objetos e exercícios; e particularmente  como, uma vez que diz respeito ao bem desfrutado, ou a ser desfrutado pelo objeto amado, é chamado o amor de benevolência, e, no que diz respeito ao bem a ser desfrutado no objeto amado é chamado de amor de complacência. O amor de benevolência é aquela disposição que nos leva a ter desejo, ou prazer no bem do outro; e essa é a coisa principal no amor cristão; com efeito, é a coisa mais essencial nele, e aquilo pelo qual nosso amor é em grande parte uma imitação do amor e da graça eterna de Deus, e do amor sacrificial de Cristo, que consiste na benevolência ou boa vontade  aos homens, como foi cantado pelos anjos no seu nascimento (Lc 2.14). De modo que a coisa principal no amor cristão é a boa vontade, ou uma disposição para se deleitar e buscar o bem daqueles que são objetos desse amor.
2. A evidência mais natural e conclusiva de que tal princípio é verdadeiro e sincero é que seja eficaz. A evidência mais natural e conclusiva de nosso desejo ou disposição em fazer o bem aos outros é quando o fazemos. Em cada caso, nada pode ser mais claro do que o fato de que a natural e conclusiva evidência da vontade é a ação; e a ação sempre segue a vontade, onde há poder para agir. A evidência natural e conclusiva de que um homem sinceramente deseja o bem de outro é que ele o busca na sua prática: pois tudo o que verdadeiramente desejamos, realmente assim buscamos. As Escrituras, portanto, falam de fazer o bem, como a evidência própria e plena do amor; e elas com frequência falam de amar em obras ou práticas, como sendo equivalente a amar em verdade e realidade: “Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade. E nisto conheceremos que somos da verdade,” isto é, saberemos que somos sinceros. E novamente: “Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e necessitados do alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?” (Tg 2.15-16) Não há proveito algum para eles, logo, não há nenhuma evidência de sinceridade de sua parte, e que você realmente deseje que sejam vestidos e alimentados. Sinceridade de desejo levaria não meramente à palavras, mas a atos de benevolência.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, concluindo, podemos usá-lo,
1. Como reprovação.
Se um espírito verdadeiramente cristão dispõe as pessoas a fazer o bem livremente às outras, então todos que são de espírito e prática contrários podem ser reprovados. Um espírito maligno e malicioso é o exato oposto disso, pois dispõe os homens a fazer o mal aos outros, e não o bem. E, do mesmo modo, é um espírito difícil e egoísta, pelo qual os homens estão totalmente inclinados a seus próprios interesses, e totalmente indispostos a renunciar a seus próprios fins por causa dos outros.
Também são de um espírito e prática muito opostos ao espírito de amor aqueles que exibem um ânimo exorbitantemente ganancioso e avarento, e que aproveitam toda oportunidade para obter tudo que puderem de seus conhecidos, ao lidarem com eles. Pedem-lhes pelo que fizeram ou lhes venderam mais do que verdadeiramente merecem, e achacam-nos ao máximo com suas demandas exorbitantes. Não se preocupam em avaliar a coisa para seus conhecidos, mas, por assim dizer, forçam-nas para que possam obter o máximo dela. E os que fazem essas coisas, em geral são muito egoístas também ao comprar dos outros, reduzindo e comprimindo até os menores preços, e se opondo a pagar pela coisa seu preço justo.
Esse espírito e prática são muito opostos ao espírito cristão, e são severamente reprovados pela grande lei do amor, isto é, que façamos aos outros como queremos que nos façam.
O assunto que estamos considerando também,
2. Exorta a todos ao dever de livremente fazer o bem aos outros.
Visto que este é um dever cristão, e uma virtude apropriada ao evangelho, e para a qual o espírito cristão, se o possuímos, vai nos dispor, procuremos, enquanto temos oportunidade, fazer o bem para as almas e os corpos de outros, esforçando-nos para sermos uma bênção para eles no tempo e na eternidade. Com esse propósito, estejamos dispostos a fazer, ou dar, ou sofrer, para que possamos fazer o bem do mesmo modo a amigos e inimigos, maus e bons, gratos e ingratos. Que nossa benevolência e beneficência sejam universais, constantes, livres, habituais, e de acordo com as nossas oportunidades e capacidades; pois isso é essencial à verdadeira piedade, e exigido pelos mandamentos de Deus! E aqui várias coisas devem ser consideradas:
Em primeiro lugar, que grande honra é ser feito um instrumento do bem no mundo. Quando enchemos nossas vidas com a prática do bem, Deus coloca sobre nós a alta honra de nos tornar uma bênção para o mundo - uma honra, como a que colocou sobre Abraão, quando disse: “De ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção!” (Gênesis 12:2) A própria luz da natureza ensina que esta é uma grande honra. Portanto, os reis e governantes do Oriente costumavam assumir para si o título de benfeitores, ou seja, “executores do bem”, como o mais honrado que podiam conceber (Lucas 22:25). Era uma coisa comum em terras pagãs, quando aqueles que tinham feito uma grande porção de bem em sua vida morriam, que os povos entre os quais habitavam  os reputassem como deuses, e construíssem templos em sua honra e para o seu culto. Até onde Deus faz os homens os instrumentos de fazer o bem para os outros, ele os torna como os corpos celestes - o sol, a lua e as estrelas, que abençoam o mundo através do derramamento da sua luz; ele os faz como os anjos, que são espíritos ministradores para os outros, para o bem deles. Sim, os faz como ele mesmo, a grande fonte de todo o bem, que está sempre derramando suas bênçãos sobre a humanidade.
Em segundo lugar, fazer livremente o bem para os outros, é tão somente fazer a eles o que gostaríamos que fizessem a nós. Se outros têm um boa vontade sincera para conosco, e nos mostram uma grande quantidade de bondade, e estão prontos para nos ajudar quando estamos em necessidade, e com esse propósito são livres para fazer, ou dar, ou sofrer por nós, e suportar nossos fardos, e sentir por nós em nossas calamidades, e são calorosos e liberais em tudo isso, nós muito grandemente aprovamos o seu espírito e conduta. E não apenas aprovamos, mas grandemente recomendamos, e, talvez, aproveitemos as ocasiões para falar bem dessas pessoas, nunca pensando, no entanto, que ultrapassaram o seu dever, mas que agem como deveriam fazer. Lembremos-nos, então, que, se isso é tão nobre e digno de ser elogiado em outros quando somos seus objetos, então devemos fazer o mesmo para eles, e para todos. O que nós assim aprovamos devemos exemplificar em nossa própria conduta.
Em terceiro lugar, consideremos como Deus e Cristo têm sido bons para nós, e quanto bem recebemos deles. A sua bondade nas coisas concernentes a este mundo tem sido muito grande. As misericórdias divinas se renovam para nós todas as manhãs e todas as noites: são tão incessantes como o nosso ser. E coisas boas ainda maiores Deus concedeu para o nosso bem espiritual e eterno. Deu-nos o que é de mais valor do que todos os reinos da terra. Deu o seu Filho unigênito e bem-amado - o maior presente que poderia dar. E Cristo não apenas fez, mas sofreu grandes coisas, e deu a si mesmo para morrer por nós; e tudo livremente, sem murmuração, ou esperança de recompensa. “Sendo rico,” com todas as riquezas do universo, “se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos.” (2 Cor. 8:9). E que grandes coisas Deus tem feito para os que dentre nós são convertidos, e foram trazidos para o lar de Cristo; libertando-nos do pecado, justificando-nos e santificando-nos, fazendo-nos reis e sacerdotes para Deus e nos dando um direito “a uma herança incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada nos céus para vós outros.” (1 Pe 1:4). E tudo isso, quando não éramos bons, mas maus e ingratos, e merecíamos em nós mesmos apenas a ira.
Em quarto lugar, vamos considerar que grandes recompensas são prometidas àqueles que livremente fazem o bem aos outros. Deus prometeu que para “com o benigno, benigno te mostras” (Sl 18:25); e não há praticamente qualquer dever mencionado em toda a Bíblia, que tenha tantas promessas de recompensa como este, seja para este mundo ou o mundo porvir.
Para este mundo, como nosso Salvador declara: “Mais bem-aventurado é dar que receber.” (Atos 20:35) Aquele que dá generosamente é mais abençoado nos dons abundantes de que ele compartilha, do que aquele que recebe a recompensa . O que é oferecido ao fazer o bem aos outros não é perdido, como se tivesse sido atirado ao mar. É, antes, como nos diz Salomão (Eclesiastes 11:1), como a semente que os orientais plantam espalhando-a pelas águas quando vêm as enchentes, a qual afunda até o leito, e lá se enraíza, e germina, e depois é encontrada novamente, em abundante colheita. O que assim é dado, é emprestado ao Senhor (Pv 19:17), e o que temos, portanto, lhe emprestado, ele vai nos pagar novamente. E não somente irá pagar, mas vai aumentar muito o seu valor. Porque, se damos, é declarado (Lucas 6:38), que “de boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos darão” Na verdade, essa é a maneira de aumentar; pois é dito (Pv 11:24.) “A quem dá liberalmente, ainda se lhe acrescenta mais e mais; ao que retém mais do que é justo, ser-lhe-á em pura perda”, e novamente (Isaías 32: 8) “o liberal projeta coisas liberais, e pela liberalidade está em pé.
Até mesmo o que os homens não regenerados dão dessa forma, Deus muitas vezes parece recompensar com grandes bênçãos temporais. Sua própria declaração é (Pro 28:27.), que “o que dá ao pobre não terá falta,” e a promessa não se restringe aos santos: e nossa observação da providência mostra que os presentes dos homens para os pobres são quase sempre recompensados por Deus, como a semente que semeiam no campo. É fácil para Deus compensar, e mais do que compensar a nós todos para que, assim, doemos para o bem dos outros. É sobre esse tipo de doação, que o apóstolo diz aos coríntios (2 Co 9:6-8), que “o que semeia com abundância, com abundância ceifará”, acrescentando que “Deus ama ao que dá com alegria”, e que ele “pode fazer-vos abundar em toda graça”, isto é, fazer com que todos as suas dádivas abundem para si mesmos.
Muitas pessoas pouco consideram o quanto a sua prosperidade depende da providência. E, no entanto, mesmo para este mundo, é “a bênção de Deus que enriquece” (Pv 10:22.); e daquele que tem consideração pelo pobre, está escrito (Sl. 41:1), que “o Senhor o livrará no dia do mal.” E se dermos da forma e com o espírito da caridade cristã, devemos, portanto, ajuntar tesouros no céu, e receber finalmente as recompensas da eternidade. Isso é aquele entesourar que não falha, do qual Cristo fala (Lucas 0:33), e, com relação ao qual declara (Lucas 14:13, 14) que, apesar de os pobres a quem beneficiamos não poderem nos recompensar, “seremos recompensados na ressurreição dos justos”

Esta, então, é a melhor maneira de dispor para nós mesmos no tempo ou para a eternidade. É a melhor maneira de dispor para nós mesmos, e a melhor maneira de dispor para nossa posteridade; pois do homem bom, que mostra favor e empresta, está escrito (Sl. 112) que “o seu poder se exaltará em glória”, e que “a sua descendência será poderosa na terra; será abençoada a geração dos justos. Na sua casa há prosperidade e riqueza, e a sua justiça permanece para sempre.” E quando Cristo vier para o julgamento, e todas as pessoas forem reunidas diante dele, em seguida, para aqueles que foram gentis e benevolentes, no verdadeiro espírito do amor cristão, para com os sofredores e pobres, deve dizer (Mat. 25: 34-36, 40): “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me.” “Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.