quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O LIVRE ARBÍTRIO - Seção 2

SEÇÃO 2
Quanto à determinação da vontade
Por determinar a vontade, se a expressão for usada com algum sentido, deve ser entendido o fazer com que o ato da vontade ou escolha seja desta e não daquela maneira. Diz-se que a vontade é determinada quando, em consequência de alguma ação ou influência, sua escolha é dirigida a ou fixada sobre um objeto particular. Desse modo, quando falamos da determinação do movimento, temos em mente o fazer com que o movimento de um corpo seja em tal direção ao invés de em outra.
A determinação da vontade supõe um efeito que deve ter uma causa. Se a vontade for determinada, há um determinador. Deve-se supor que esse seja o caso mesmo com relação àqueles que dizem que a vontade determina a si mesma. Se isso ocorrer, a vontade é tanto a determinadora quanto a determinada. É uma causa que age e produz efeitos sobre si mesma e é o objeto de sua própria influência e ação.
Com respeito àquela grande inquirição: “O que determina a vontade?”, seria muito tedioso e desnecessário, no momento, examinar todas as variadas opiniões que têm sido apresentadas com relação a esse assunto. Também não é necessário que eu entre em uma discussão particular de todos os pontos debatidos nas disputas sobre esta outra questão: “Por acaso a vontade segue sempre o ultimo ditame do entendimento?” É o suficiente para o meu presente propósito dizer que o motivo que, como se apresenta à consideração da mente, for o mais forte, é o que determina a vontade. Mas pode ser necessário que eu explique um pouco o que quero dizer.
Por motivo quero dizer o todo daquilo que move, estimula ou convida a mente à volição, quer seja uma coisa isolada ou muitas coisas conjuntamente. Muitas coisas específicas podem concorrer e unir suas forças para induzir a mente, e, quando isso ocorre, todas elas juntas são como um motivo complexo. E quando falo do motivo mais forte, tenho em mente a força do todo que opera para induzir um ato particular de volição, quer seja a força de uma coisa isolada ou de muitas coisas juntas.
O que quer que seja objetivamente um motivo, nesse sentido, deve ser algo que existe na visão ou apreensão do entendimento, ou da faculdade perceptiva. Nada pode induzir ou convidar a mente a querer ou agir sobre algo, a menos que seja percebido ou esteja de uma forma ou outra na visão da mente. Pois aquilo que é totalmente imperceptível e está perfeitamente fora da vista da mente não pode afetá-la de forma alguma. É muito evidente que nada está na mente ou a alcança, ou se apossa de qualquer parte dela, de alguma outra maneira que não seja pela percepção ou pelo pensamento.
E penso que todos devem concordar que tudo o que é propriamente chamado um motivo, estímulo ou indução a um agente perceptivo e volitivo tem algum tipo e grau de tendência ou vantagem para mover ou estimular a vontade, prévio ao efeito ou ao ato da vontade estimulada. Essa tendência prévia do motivo é o que eu chamo de a sua força. Aquele motivo que tem um menor grau de vantagem prévia ou tendência para mover a vontade, ou que parece menos convidativo na maneira como se apresenta à vista da mente, é o que chamo de um motivo mais fraco. Ao contrário, aquele que parece mais convidativo e tem, pelo que o entendimento ou apreensão atribui a ele, o maior grau ou tendência prévia a estimular e induzir a escolha é o que chamo de motivo mais forte. E, nesse sentido, suponho que a vontade é sempre determinada pelo motivo mais forte.
As coisas que estão ao alcance da vista da mente têm sua tendência ou vantagem para mover ou estimular a vontade devido a muitas fatores pertencentes à natureza e circunstâncias da coisa observada, à natureza e circunstâncias da mente que vê e ao grau e maneira da vista. Essas coisas talvez sejam difíceis de ser perfeitamente enumeradas. Mas penso que pode ser suficientemente determinado, de maneira geral, sem espaço para controvérsia, que o que é percebido ou apreendido por um agente inteligente e voluntário, que tenha a natureza e influência de um motivo para a volição ou escolha, é considerado ou visto como bom. E essa coisa não tem tendência alguma para assegurar a eleição da alma em nenhum grau maior a menos que apareça como tal. Pois dizer o contrário seria dizer que as coisas que surgem [diante da mente] têm uma tendência, pela aparição que fazem, de obrigar a mente a escolhê-las, de alguma outra forma que não seja aparecendo como elegíveis para ela, o que é absurdo. Portanto deve ser verdade, em algum sentido, que a vontade sempre é como o maior bem aparente é. Mas, apenas para o correto entendimento disso, duas coisas devem ser bem e distintamente observadas.
1. Deve ser observado em que sentido uso o termo “bom”, isto é, com o mesmo significado de “agradável” [agreeable]. Parecer bom para a mente, como uso a frase, é o mesmo que parecer agradável ou aprazível à mente. Certamente nada que seja considerado mau e desagradável parece convidativo e elegível para a mente, ou tende a atrair sua inclinação e escolha; e nem, de fato, nada que seja indiferente, nem agradável nem desagradável. Mas se tende a atrair a inclinação e mover a vontade deve estar sob a noção daquilo que se acomoda à mente. Portanto, aquilo que, como se mostra à vista da mente, acomoda-se mais a ela e mais lhe agrada deve ter a maior tendência de atrai-la e ativá-la. Nesse sentido, é o maior bem aparente: dizer o contrário está, no mínimo, um pouco próximo de uma contradição direta e clara.
A palavra “bom”, nesse sentido, inclui em seu significado a remoção ou prevenção do mal ou daquilo que é desagradável e penoso. É agradável e aprazível evitar o que é desagradável e desfavorável, e ter o mal-estar removido. De modo que aqui se inclui aquilo que Locke supõe determinar a vontade. Pois quando ele fala de “mal-estar” [uneasiness] como o que determina a vontade, deve-se entendê-lo como que supondo que o fim ou propósito que governa a volição ou ato da preferência é a prevenção ou remoção desse mal-estar, e isso é a mesma coisa que escolher e buscar o que é mais tranquilo e agradável.
2. Quando digo que a vontade é conforme o maior bem aparente, ou (como expliquei) que a volição sempre tem por seu objeto a coisa que parece mais agradável, deve ser cuidadosamente observado, para evitar confusão e objeção desnecessária, que falo do objeto direto e imediato do ato da volição e não de algum objeto ao qual o ato da vontade tenha apenas um relação indireta e remota. Muitos atos de volição têm alguma relação remota a um objeto que é diferente da coisa que mais imediatamente se quer e se escolhe. Assim, quando um bêbado tem diante de si a bebida e tem que escolher se vai bebê-la ou não, os objetos próprios e imediatos, em relação aos quais sua volição interage no momento e entre os quais sua vontade agora decide, são seus próprios atos de tomar a bebida ou deixá-la de lado. E isso certamente será feito de acordo com o que, na presente visão de sua mente, tomada no seu todo, lhe é mais agradável. Se escolhe bebê-la e não deixá-la de lado, então essa ação, na maneira como aparece à vista de sua mente, com tudo o que pertence à sua aparência lá, é mais agradável e aprazível do que deixar a bebida de lado.

Mas os objetos aos quais esse ato da volição pode relacionar-se mais remotamente e entre os quais sua escolha pode determinar mais indiretamente são o presente prazer que o homem espera pela bebida e a miséria futura, que julga será a consequência dela. Ele pode julgar que essa miséria futura, quando vier, será mais desagradável e incômoda do que refrear-se da bebida agora o seria. Mas essas duas coisas não são os objetos próprios com os quais o ato da volição interage mais de perto. Pois o referido ato da vontade está preocupado com o presente ato de beber ou abster-se de beber. Se ele escolhe beber, então beber é o objeto próprio do ato de sua vontade, e beber, por algum motivo ou outro, agora lhe parece o mais agradável e o mais cômodo. Se escolher abster-se, então a abstenção é o objeto imediato de sua vontade e lhe é mais agradável. Se na escolha que faz na situação prefere um prazer presente a uma vantagem futura, a qual julga será maior quando vier, então um prazer presente menor lhe parece mais agradável do que uma maior vantagem distante. Se, ao contrário, uma vantagem futura é preferida, então isso lhe parece o mais agradável e o mais cômodo. Logo, ainda a volição presente é como o maior bem aparente no presente é. 
[Continua...]

sábado, 12 de setembro de 2015

O LIVRE ARBÍTRIO - Seção I


SEÇÃO I
Quanto à Natureza da Vontade
É possível que se pense que não há grande necessidade de se preocupar em definir ou descrever a Vontade, uma vez que essa palavra é, em geral, tão bem compreendida quanto qualquer outra que possamos usar para explicá-la. Assim de fato seria, não tivessem filósofos, metafísicos e teólogos polêmicos trazido à matéria à obscuridade pelas coisas que falaram a seu respeito. Mas, uma vez que esse é o caso, penso que possa ser de alguma utilidade e possa levar à maior clareza no discurso seguinte dizer algumas coisas relacionadas a ela.
Portanto, observo que a vontade (sem qualquer refinamento metafísico) é aquilo pelo qual a mente escolhe algo. A faculdade da vontade é aquele poder ou princípio da mente pela qual é capaz de escolher. Um ato da vontade equivale a um ato de escolher ou de escolha.
Se alguém achar que seja uma definição mais perfeita da vontade dizer que é aquilo pelo qual a alma ou escolhe ou recusa, contento-me com isso, embora ache que seja o suficiente dizer que é aquilo pelo qual a alma escolhe, pois em qualquer tipo de ato da vontade a mente escolhe uma coisa em detrimento de outra. Ela escolhe algo ao invés de seu contrário ou ao invés da ausência ou não existência daquela coisa. Logo, em qualquer ato de recusa, a mente escolhe a ausência da coisa recusada. O positivo e o negativo são colocados diante da mente para a sua escolha, e ela escolhe o negativo, e essa ação de escolha da mente, nesse caso, é propriamente o ato da vontade: a determinação da vontade entre os dois é uma determinação voluntária, mas isso é o mesmo que fazer uma escolha. De modo que, por quaisquer nomes que chamemos o ato da vontade: escolher, recusar, aprovar, desaprovar, gostar, desgostar, abraçar, rejeitar, determinar, orientar, ordenar, proibir, inclinar, ser avesso, agradar-se ou desagradar-se: tudo pode ser reduzido a esse [ato] de escolher. Para a alma, agir voluntariamente é sempre agir eletivamente.
[John] Locke diz: “A vontade nada significa exceto um poder ou habilidade para preferir ou escolher”. E, na página anterior, ele diz: “A palavra preferir parece expressar melhor o ato da volição”, mas adiciona que “ela não o faz com precisão, pois, embora um homem preferisse voar a andar, contudo quem pode dizer que ele o queira?” Mas o exemplo que ele menciona não prova que haja algo a mais do que o querer, além do mero preferir; pois deve ser considerado qual é o objeto imediato da vontade, com respeito ao andar do homem ou a qualquer ação externa, o que não é ser removido de um lugar para outro, na terra ou pelo ar. Esses são objetos remotos de preferência. A coisa mais próxima escolhida ou preferida, quando um homem quer andar, não é ser removido a algum lugar que lhe agrade, mas é um esforço ou movimento de suas pernas e pés, a fim de o fazê-lo. E o seu querer essa alteração em seu corpo, no momento presente, nada mais é do que sua escolha ou preferência dessa alteração em seu corpo, nesse momento, ou o fato de gostar mais dela do que de sua abstenção. Deus fez e estabeleceu de tal forma a natureza humana, a alma estando ligada a um corpo  em estado apropriado que, quando a alma prefere ou escolhe esse esforço ou alteração imediata do corpo, tal alteração imediatamente acontece.  Nada mais há nas ações de minha mente, de que esteja cônscio enquanto ando, a não ser minha preferência ou escolha, nos momentos sucessivos, de que haja essas alterações de minhas sensações e movimentos externos. Também há uma expectativa concorrente habitual de que isso acontecerá, tendo sempre se descoberto pela experiência que, com essa preferência imediata, aquelas sensações e movimentos real, instantânea e constantemente ocorrem. Mas isso não se dá no exemplo do voo. Embora possa-se dizer que alguém remotamente escolha ou prefira voar, contudo, ele não prefere, ou deseja, sob as circunstâncias em vista, qualquer esforço imediato dos membros de seu corpo para esse fim, visto que não tem expectativa alguma de que obterá o fim desejado por qualquer esforço exercido. Ele não prefere ou se inclina a qualquer esforço corporal, por entender que nessa circunstância, isso seria totalmente em vão. De modo que, se distinguirmos os objetos próprios dos diversos atos da vontade, não se evidenciará por esse ou por exemplos semelhantes que haja qualquer diferença entre volição e preferência, ou que a escolha de alguém devido a gostar ou agradar-se de alguma coisa, não seja o mesmo que o querer [willing] essa coisa. Assim, um ato da vontade é comumente expresso por agradar a um homem fazer desse ou daquele modo; e alguém fazer como quer [wills] e como lhe agrada são, na fala comum, as mesmas coisas.
Locke diz: “A vontade é perfeitamente distinta do desejo, o qual, na mesma ação, pode ter uma tendência bastante contrária àquilo em que nos apoia nossa vontade. Um homem, diz ele, a quem não posso recusar, pode obrigar-me a convencer outra pessoa, a qual, ao mesmo tempo em que estou falando, possa desejar não convencer. Nesse caso, é evidente que a vontade e o desejo são contrários.”
Não suponho que vontade e desejo sejam palavras de precisamente o mesmo significado. Vontade parece ser uma palavra de um significado mais geral, estendendo-se a coisas presentes e ausentes. Desejo diz respeito apenas a coisas ausentes. Posso preferir minha atual situação e postura, digamos, estar sentado ou ter meus olhos abertos, e assim posso querer estar desse jeito. Entretanto, não posso pensar que sejam tão inteiramente distintas a ponto de que se possa dizer que sejam contrárias. Um homem nunca, em circunstância nenhuma, quer alguma coisa contrária aos seus desejos, ou deseja alguma coisa contrária à sua vontade. O exemplo pré-mencionado, aduzido por Locke, não prova que isso acontece. Ele pode, por alguma consideração ou outra, querer proferir discursos que tenham a tendência de persuadir outra pessoa, e ainda assim pode desejar que esses discursos não possam persuadi-la. Contudo, sua vontade e desejo não são contrários em absoluto. A mesma coisa que ele quer, ele também deseja; e ele não quer uma coisa e deseja a contrária, em nenhuma situação particular. No exemplo acima, não é cuidadosamente observado qual é a coisa que se quer e qual é a coisa que se deseja. Se fosse observado, seria descoberto que a vontade e o desejo não colidem de forma alguma.
A coisa que se quer em alguma consideração é proferir tais palavras, e certamente a mesma consideração influencia a pessoa de tal maneira que não deseja o contrário. Quando se considera todas as coisas, ela escolhe proferir tais palavras e não deseja não as proferir. E o mesmo ocorre com aquilo que Locke se refere como desejado, ou seja, que as palavras, embora tendam à persuasão, não sejam eficazes para esse fim. A sua vontade não se opõe a isso; ela não quer que sejam eficazes, ao contrário, quer que não sejam, conforme seu desejo. A fim de provar que a vontade e o desejo podem colidir, deveria ser mostrado que podem ser contrários um ao outro na mesma coisa ou com respeito ao mesmo objeto da vontade ou desejo. Mas aqui os objetos são dois; e em cada um, tomado por si mesmo, a vontade e o desejo concordam. Não é de se maravilhar que não devam concordar em coisas diferentes, embora sejam minimamente distintas em suas naturezas. A vontade pode não concordar com a vontade e o desejo com o desejo, em coisas diferentes. Posso dizer que nesse mesmo exemplo mencionado por Locke, uma pessoa pode, por alguma consideração, desejar usar de persuasão e, ao mesmo tempo, pode desejar que elas não prevaleçam. Contudo, ninguém dirá que o desejo se opõe ao desejo, ou que isso prova que o desejo é algo perfeitamente distinto do desejo. Observações semelhantes poderiam ser feitas dos outros exemplos produzidos por Locke, como o de um homem desejando se ver livre da dor etc.
Mas, para não me alongar muito nisso, quer o desejo e a vontade, quer a preferência e a volição sejam precisamente as mesmas coisas, confio que todos concordarão que em cada aspecto da vontade há um ato de escolha; que em cada volição há uma preferência, ou uma inclinação prevalecente da alma, pela qual nesse instante ela se encontra fora de um estado de perfeita indiferença com respeito ao objeto direto da volição. De modo que, em cada ato ou atuação da vontade há alguma preponderância da mente, um modo ao invés de outro; e a alma prefere antes ter ou fazer uma coisa a outra, ou não ter ou fazer aquela coisa. Onde não há absolutamente preferência ou escolha, mas um equilíbrio perfeito e contínuo, não há volição.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Um Chamado aos Não Convertidos

Richard Baxter


[Nota do blog: Ainda que este blog seja dedicado à obra de Jonathan Edwards, lanço aqui o prefácio de uma obra fundamental de Richard Baxter, teólogo puritano a quem muito admiro e recomendo. A obra completa estará disponível em breve, se Deus assim me permitir completá-la.]

PREFÁCIO
A todas as pessoas não santificadas que lerão este livro, especialmente aos meus ouvintes na vila e paróquia de Kidderminster.

Homens e irmãos,
O Deus eterno que os criou para a vida eterna, e os redimiu por seu único Filho, quando vocês a haviam perdido e a si mesmos, sendo-lhes atencioso nos seus pecados e miséria, compôs o evangelho e o selou pelo seu Espírito, e ordenou a seus ministros que o pregassem ao mundo, para que, sendo-lhes ofertado livremente o perdão, e os céus abertos diante de vocês, pudesse chamá-los de seus prazeres carnais, e de seguirem no encalço deste mundo enganoso, e os familiarizasse com a vida para a qual foram criados e redimidos, antes que estivessem mortos e sem remédio.
Ele não lhes envia profetas ou apóstolos, que recebem suas mensagens por revelação imediata; porém, os chama por meio de seus simples ministros, que são comissionados por ele a pregar-lhes o mesmo evangelho primeiramente entregue por Cristo e seus apóstolos. O Senhor vê como vocês esqueceram-se dele e de seu fim principal, e como menosprezam as coisas eternas, à semelhança de homens que não entendem o que devem fazer ou sofrer. Ele vê como são ousados no pecado, e destemidos mesmo com as ameaças, e como são descuidados de suas almas, e como a obra dos infiéis se acha nas suas vidas, ao mesmo tempo em que a fé cristã está nas suas bocas.
Ele vê o terrível dia se aproximando, quando suas dores começarão, e deverão lamentar isso tudo com clamores inúteis, em tormento e desespero. E, então, a lembrança de suas tolices rasgará seus corações, se a verdadeira conversão disso não os livrar agora.
Compadecido de suas almas pecaminosas e miseráveis, o Senhor, que conhece sua situação melhor do que vocês mesmos, nos comissionou a falar-lhes em Seu nome (2 Co 5:19) e a lhes dizer abertamente sobre seus pecados e miséria, e sobre qual será seu fim, e como verão brevemente uma triste mudança, se persistirem nisso por mais um pouco.
Havendo-os comprado por tão caro preço como é o sangue de seu Filho Jesus Cristo, e lhes feito promessas de perdão tão livres e abrangentes, e de graça e glória eternas, Ele nos ordenou que lhes oferecêssemos isso tudo como dádiva de Deus, e que lhes suplicássemos a considerarem a necessidade e dignidade daquilo que oferecia. Ele vê e se compadece de vocês, enquanto estão submersos nos cuidados e prazeres mundanos, avidamente seguindo após brinquedos infantis, gastando o tempo curto e precioso por coisas sem valor, tempo esse em que deveriam se preparar para uma vida eterna. Portanto, solenemente nos ordenou que os chamássemos, e lhes disséssemos sobre como desperdiçam seus esforços e estão prestes a perder suas almas, e a lhes falar sobre coisas melhores e superiores que poderiam certamente obter, se ouvissem o seu chamado (Is 55:1-3).
Cremos e obedecemos à voz de Deus. E viemos até vocês com a mensagem que nos incumbiu de pregar, e que instássemos, em tempo e fora de tempo, que levantássemos nossas vozes como uma trombeta, e mostrássemos seus pecados e transgressões (Is 58.1-2; 1 Tm 4.1-2)
Mas, infelizmente, para o luto de nossas almas e a ruína das suas, vocês fecham os ouvidos, enrijecem os pescoços, endurecem os corações, e nos enviam de volta a Deus com gemidos, para lhe dizer que cumprimos seu chamado, mas que não pudemos lhes fazer bem, nem ao menos obter uma única audiência sóbria. Tomara nossos olhos fossem uma fonte de lágrimas, para que pudéssemos lamentar nosso povo ignorante e descuidado, que tem Cristo diante de si, e o perdão, a vida e os céus, mas não tem corações para conhecê-los e estimá-los! Que poderiam ter Cristo, a graça e a glória, bem como as demais coisas, não fora sua voluntária negligência e desprezo! Tomara Deus enchesse nossos corações com mais compaixão por essas almas miseráveis, para que pudéssemos nos atirar a seus pés, e segui-las até as suas casas, e lhes falar com amargas lágrimas, pois, por muito tempo, temos lhes pregado em vão.
Estudamos a clareza para fazê-los entender; examinamos as palavras sérias e penetrantes, para fazê-los sentir. Tudo em vão. Se os maiores assuntos funcionassem com eles, nós os despertaríamos. Se as mais doces coisas funcionassem, nós os provocaríamos e ganharíamos seus corações. Se as coisas mais terríveis funcionassem, ao menos os faríamos temer a impiedade. Se a verdade e a certeza os vencessem, cedo os convenceríamos. Se o Deus que os criou, e o Cristo que os comprou pudessem ser ouvidos, a situação deles logo seria alterada. Se a Escritura pudesse ser ouvida, cedo prevaleceríamos. Se a razão, mesmo os melhores e mais convincentes motivos, pudessem ser ouvidos, não duvidamos de que rápido os convenceríamos. Se a experiência pudesse ser ouvida, mesmo a sua própria, e a do mundo todo, a situação estaria resolvida. Sim, se a consciência interior pudesse ser ouvida, a situação deles estaria melhor do que a atual. Mas se nada puder ser ouvido, o que faremos por eles? Se o temível Deus do céu for desprezado, com quem se preocuparão? Se o amor e o sangue inestimável do Redentor forem menosprezados, o que será valorizado? Se os céus não lhes têm uma glória desejável, e as alegrias eternas não tiverem valor; se podem zombar no inferno, e dançar sobre o abismo sem fundo e gracejar com o fogo consumidor, e isso quando Deus e homem os alertam do perigo, o que faremos por almas semelhantes a essas?
Uma vez mais, em nome do Deus dos céus, lhes trarei a mensagem que ele nos ordenou, e a deixarei nestas linhas suspensas para convertê-los ou condená-los; para mudá-los ou suscitar contra vocês julgamento, e para ser um testemunho às suas faces de que uma vez ouviram um sério chamado para que se arrependessem.
Ouçam, vocês que são escravos do mundo, e servos da carne e de Satanás! Que gastam seus dias buscando a prosperidade na terra, e afogam suas consciências na bebida, glutonaria, no ócio e nos divertimentos tolos; que conhecem seus pecados e, ainda assim, pecam, como se desafiassem a Deus, e o suplicassem a lhes fazer o mal e a não os poupar! Ouçam, todos os que não se importam com Deus, e nem têm coração para as coisas santas, e não sentem prazer na palavra ou no culto do Senhor, nem nos pensamentos e menções da vida eterna! Vocês que são relaxados com suas almas imortais, e nunca separam uma única hora para investigar sobre a situação em que se encontram, se são santificados ou profanos, e se estão prontos para comparecer perante o Senhor! Ouçam, todos vocês que, por pecar na luz, se atordoaram na infidelidade, e não creem na palavra de Deus! Aquele que tem ouvidos para ouvir, que ouça o chamado gracioso, mas terrível, de Deus! Seus olhos estão sobre vocês. Seus pecados estão registrados e certamente terão notícias deles ainda. Deus possui o livro agora, e o escreverá por inteiro nas suas consciências, com seus terrores, e desse modo vocês também o possuirão.
Ó pecadores, tomara vocês soubessem ao menos o que estão fazendo! E que soubessem a quem estão ofendendo! O sol é escuridão diante da Sua Majestade, esta mesma que vocês abusam diariamente e provocam insensivelmente. Os anjos que pecaram não puderam permanecer diante dele, mas foram expulsos para serem atormentados com os demônios. E ousam semelhantes vermes tolos como vocês ofendê-lo tão insensivelmente, e se colocarem contra o seu Criador? Tomara vocês soubessem ao menos um pouco da situação de suas almas miseráveis, que chamaram o Deus vivo contra si! As palavras de sua boca, que os fizeram, podem desfazê-los; a fúria de seu rosto os cortará e lançará fora na completa escuridão. Como estão prontos os demônios que os tentaram a cair sobre vocês, e nada esperam senão a palavra vinda de Deus para tomá-los e usá-los como suas possessões! E, assim, em um momento, vocês estarão no inferno. Se Deus for contra vocês, todas as coisas também o são. Este mundo é tão somente a sua prisão, pois tudo o que amam está nele. Vocês estão reservados aqui para o dia da ira (Jó 21:30).
O Juiz está vindo, e a sua alma está partindo. Ainda um pouco, e seu amigo dirá a seu respeito: “Está morto”. E você verá as coisas que agora despreza, e sentirá aquilo que agora não acredita. A morte lhe trará um argumento ao qual não poderá responder, um argumento que efetivamente refutará seus sofismas contrários à Palavra e aos caminhos do Senhor, e todas as suas imbecilidades presunçosas. E, então, como será rápida a sua mudança de mente! Seja então um descrente, se puder. Sustente, então, suas antigas palavras, que costumava proferir contra a vida santa e celestial! Defenda, então, aquela causa, diante do Senhor, que costumava advogar contra seus mestres, e contra o povo temente a Deus. Apegue-se, então, às suas antigas opiniões e pensamentos desdenhosos acerca da diligência dos santos. Apronte agora as suas mais fortes razões, e fique de pé diante do Juiz, e defenda como um homem a sua vida carnal, mundana e ímpia. Mas agora que tem Alguém com quem disputar, a esse não irá subjugar, nem adiará como faz conosco, criaturas como você.
Ó pobre alma! Não há nada senão um fino véu de carne entre você e essa vista maravilhosa, que em breve o silenciará, e mudará sua voz, e o fará mudar de opinião! Tão logo a morte levantar essa cortina, você verá primeiro aquilo que rapidamente o deixará mudo. Como se apressa esse dia e hora em chegar! Quando você não tiver senão mais algumas poucas horas alegres, alguns poucos tragos e bocados, e um pouco mais das honras e riquezas do mundo, sua porção será gasta, e seus prazeres findarão, e tudo em que você colocou o coração terá passado. De tudo aquilo pelo que você vende o Salvador e a salvação, nada ficou senão o oneroso ajuste de contas. Como um ladrão que se assenta na taverna alegremente para gastar o dinheiro roubado, enquanto os homens cavalgam a toda pressa para prendê-lo, assim ocorre com você. Enquanto se encontra afogado em cuidados e prazeres carnais, e festejando com sua infâmia, a morte vem a toda pressa para capturá-lo, e levar sua alma para um lugar e estado de que agora você pouco conhece ou se importa.
Suponham que, enquanto estivessem ousados e ocupados no pecado, estivesse vindo um mensageiro enviado de Londres para agarrá-los e matá-los. Ainda que não o vissem, se, contudo, soubessem que estava vindo, isso acabaria com a sua festa, e ficariam a pensar sobre a velocidade desse mensageiro, e ficariam a ouvir quando batesse as suas portas. Oh! Tomara pudessem ver com que pressa vem a morte, mesmo que ela ainda não os tenha vencido! Nenhum mensageiro é tão veloz! Nenhum é mais certo! Tão certo como o sol estará com vocês pela manhã, ainda que tenha muitas milhares e centenas de milhas para percorrer à noite, também a morte rapidamente estará com vocês. E, então, o que será de suas diversões e prazeres? Vocês farão gracejos e esbravejarão? Nesse dia, se rirão dos que lhe alertarem? Nessa hora, será melhor ser um crente santificado ou um mundano sensual? “E aquilo que ajuntaram, para quem será” (Lc 12:19-21). Vocês não observam que os dias e semanas rapidamente passam, e as noites e manhãs estão aceleradas, e rapidamente sucedem umas às outras? Vocês dormem “mas não a sua condenação”; vocês tardam, mas “o juízo lavrado há longo tempo não tarda” (2 Pe 2:3), para o qual estão “reservados.” (2 Pe 2:9 ) “Tomara fossem eles sábios! Então, entenderiam isto e atentariam para o seu fim.”: “Aquele que tem ouvidos para ouvir, que ouça o chamado de Deus neste dia de salvação.” (Dt 32:29)
Ó pecadores descuidados! Tomara nada conhecessem senão o amor ao qual tão ingratamente negligenciam, e a preciosidade do sangue de Cristo ao qual desprezam! Oh! Que nada conhecessem senão as riquezas do evangelho! Oh! Que nada conhecessem, senão um pouco da certeza, da glória e da bem-aventurança dessa vida eterna, sobre a qual agora ainda não têm os corações firmados, nem estão persuadidos a primeira e diligentemente buscar (Hb 11:6; 12:28 e Mt 6:12). Se nada soubessem senão a vida infindável com Deus que negligenciam, como seria rápida a sua fuga do pecado! Como seria rápida sua mudança de mente e de vida, de curso e companhia; e como mudariam o fluxo de suas afeições, e colocariam seus cuidados em outras coisas! Como resolutamente desprezariam a concessão a estas mesmas tentações que agora os enganam e os arrebatam! Como zelosamente se moveriam após esta vida bem-aventurada! Como estariam prontamente com Deus em oração! Como seriam diligentes em ouvir, aprender e investigar! Como seriam sérios em meditar nas leis de Deus! (Sl 1:1-2) Como temeriam pecar em pensamento, palavra ou ação; e como seriam cuidadosos em agradar a Deus e crescer em santidade! Oh! Como seriam pessoas transformadas! E por que não deveriam crer na palavra certa de Deus, prevalecendo ela sobre vocês, esta mesma que lhes abre essas coisas gloriosas e eternas?
Mas, permita-me lhes dizer que, mesmo aqui, na terra, vocês pouco sabem a diferença entre a vida que recusam e aquela que escolheram. Os santos são íntimos de Deus, ao passo que vocês raramente ousam pensar nEle, e são íntimos apenas da terra e da carne. Eles conversam sobre o céu, enquanto vocês são totalmente estranhos a este, e o Deus a quem servem é o ventre, e a sua preocupação é apenas com as coisas terrenas (Fl 3:18-20). Eles buscam a face de Deus, enquanto vocês não buscam nada superior a este mundo. Eles estão ocupados dispondo para a vida infinita, onde serão semelhantes aos anjos (Lc 20:36); enquanto vocês estão arrebatados com as sombras e coisas transitórias que nada valem. Como são arriscadas e degradantes suas vidas terrenas, carnais e pecaminosas em comparação à vida nobre e espiritual dos verdadeiros crentes!
 Muitas vezes olhei para esses homens com dor e pena, vendo-os andar com dificuldade no mundo, e gastar suas vidas, cuidados e trabalhos por nada mais do que um pouco de comida e vestuário, ou um pouco de pálidos ganhos, ou de prazeres carnais, ou honras vazias, como se não tivessem nada mais alto em mente. Que diferença há entre as vidas desses homens e das feras que perecem; homens que gastam seu tempo no trabalho, na comida e na bebida, enquanto vivem? Não provam dos prazeres celestiais interiores que os santos provam e nos quais vivem. Prefiro ter um pouco do conforto dos santos, que os mencionados pensamentos acerca de sua herança celestial os concede - ainda que venha acompanhado de todo o desprezo e sofrimentos - a ter todos os prazeres e prosperidades traiçoeiras que vocês têm. Não queria ter nenhuma de suas opressões secretas e crises de consciência, nem os pensamentos negros e terríveis sobre a morte e a vida porvir, em troca de tudo o que mundo lhes dá, ou que possam razoavelmente esperar que ele o faça.
Se estivesse no seu estado carnal de não convertidos, e soubesse o que agora sei, e acreditasse no que agora acredito, penso que minha vida teria um gosto antecipado do inferno. Como seriam frequentes os meus pensamentos sobre os terrores do Senhor no dia lúgubre que se aproxima! A morte certa e o inferno ainda estariam diante de mim. Pensaria neles de dia, e sonharia com eles à noite. Eu me deitaria com medo, e com medo me levantaria, e viveria no temor de que a morte me alcançasse antes da conversão. Teria pouquíssima felicidade nas coisas que possuísse, e pouco prazer em qualquer companhia, e pouca alegria nas coisas do mundo, enquanto soubesse estar sob a maldição e ira de Deus. Estaria ainda no temor de ouvir esta voz: “Louco, esta noite te pedirão a tua alma.” (Lc 12:20) E esta temível sentença estaria escrita na minha consciência: “Para os perversos, todavia, não há paz, diz o SENHOR.” (Is 48:22)
Ó pobres pecadores! É uma vida cheia de alegria que vocês poderiam desfrutar, se estivessem verdadeiramente dispostos a ouvir a Cristo e vir a Deus. Poderiam, então, se aproximar de Deus com ousadia, e chamá-lo de Pai, e confortavelmente confiar a Ele suas almas e corpos. Se olhassem para as promessas, diriam: são para mim! Se para a maldição, poderiam dizer: disto fui liberto! Quando lessem a lei, poderiam ver aquilo de que foram salvos! Quando lessem o evangelho, poderiam ver aquele que os redimiu, o curso do seu amor, sua vida santa, seus sofrimentos, e segui-lo nas suas tentações, lágrimas e sangue, na obra da salvação. Poderiam ver a morte conquistada, os céus abertos, e suas ressurreições e glorificações fornecidas na ressurreição e glorificação do seu Senhor. Se olhassem para os santos, poderiam dizer: “são meus irmãos e companheiros.” Se olhassem para os profanos, poderiam se regozijar por se acharem salvos desse estado. Se olhassem para o céu, o sol, a lua e as inumeráveis estrelas, poderiam pensar e dizer: “A face de meu Pai é infinitamente mais gloriosa; as coisas que ele preparou para os seus santos são superiores; o que está ali não é senão o palácio exterior dos céus; a bem-aventurança que nos prometeu vai muito além e é tão elevada que nem carne nem sangue podem contemplar.” Se pensassem sobre o túmulo, poderiam lembrar-se que o Espírito glorificado, a Cabeça viva, e o Pai amoroso, todos se encontram em relação tão próxima ao seu corpo de pó, que ele não pode ser esquecido nem negligenciado; mas é mais certo que ele volte à vida do que as plantas e flores renasçam na primavera; pois a alma, que é a raiz do corpo, ainda estará viva; e Cristo está vivo, que é a raiz de ambos. Até mesmo a morte, que é a rainha dos terrores, poderia ser lembrada e desfrutada com alegria, como sendo o dia da sua libertação do pecado residual e da dor, e o dia no qual creram, esperaram e aguardaram, dia em que veriam as coisas benditas de que ouviram, e descobririam, pela feliz experiência presente, como foi bom escolher a melhor parte, e ser um santo e sincero crente.
O que me diz, ó homem? Não é esta uma vida mais deleitosa? Estar seguro da salvação e pronto a morrer não é melhor do que viver como os ímpios, que têm os corações sobrecarregados com os excessos, bebidas e cuidados desta vida, vindo sobre eles inesperadamente o dia? (Lc 21:34-36) Não poderiam vocês viver uma vida confortável, se de uma vez fossem feitos herdeiros dos céus, e assegurados de que seriam salvos ao deixarem o mundo? Oh! Olhem a sua volta, então, e pensem no que estão fazendo, e não lancem fora semelhantes esperanças a troco de nada. A carne e o mundo não podem lhes dar essas esperanças ou confortos.
E, além de toda a miséria que trazem sobre si mesmos, vocês são os perturbadores dos outros, enquanto permanecem não convertidos. Vocês dão problemas aos magistrados para que lhes governem com as leis; perturbam os ministros, ao resistirem à luz e aos conselhos que lhes oferecem. Seus pecados e miséria são a causa das maiores aflições e problemas para eles no mundo. Vocês perturbam a comunidade, e atraem os julgamentos de Deus sobre si. São vocês os que mais perturbam a paz santa e a ordem das igrejas e impedem nossa união e reforma, e são a vergonha e o problema das igrejas onde se intrometem, e nos lugares onde frequentam.
Ah! Senhor, como é pesada e triste esta situação, até mesmo na Inglaterra, onde abunda o evangelho mais do que em qualquer nação do mundo, onde o ensino é tão claro e comum, e todos os auxílios que desejamos estão próximos. Quando a espada nos retalhava, e o julgamento corria como fogo na nação, a libertação nos aliviou, e tantas misericórdias admiráveis nos atraíram a Deus, e ao evangelho, e à vida santa. Porém, como é triste que, após isso tudo, nossas cidades, vilas e campos abundem com multidões de profanos, e enxameiem de tanta sensualidade, em toda parte, para nossa dor, como hoje vemos!
Alguém poderia pensar que, após toda essa luz, e toda essa experiência, e todos esses julgamentos e misericórdias de Deus, o povo desta nação se reuniria, como um só homem, e se voltaria para o Senhor, e viria aos seus mestres piedosos, lamentando todos os pecados de outrora, e desejando se juntar uns aos outros em humilhação pública, para confessá-los abertamente, rogando ao Senhor perdão para eles, e anelariam suas instruções, e estariam, a partir daí, felizes em ser governados pelo Espírito no seu interior, e pelos ministros de Cristo no exterior, de acordo com a palavra de Deus. Alguém poderia pensar que, após ouvirem esse arrazoado, com evidências da Escritura, como ouviram, e após todos esses males e misericórdias, não haveria um ímpio entre nós, nem um mundano, nem um bêbado, ou alguém que odiasse a reforma, nem um inimigo da santidade que fosse encontrado em todas as nossas cidades ou campos. Se nem todos concordássemos acerca de certas cerimônias ou formas de governo, alguém poderia pensar que, antes disso, todos deveríamos ter concordado em viver uma vida santa e celestial, em obediência a Deus, à sua palavra e aos ministros, e em amor e paz uns com os outros.
Porém, infelizmente, como está longe o nosso povo dessa conduta! A maior parte deles, em muitos lugares, põem, na verdade, seus corações em coisas terrenas e buscam “não em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça”; mas contemplam a santidade como algo inútil. Suas famílias não oram, e até mesmo algumas palavras sem coração e sem vida devem servir ao invés de orações ferventes, sinceras e diárias [ou, talvez, apenas no dia do Senhor, à noite]. A seus filhos não se ensina o conhecimento de Cristo, do pacto da graça, nem são criados no alimento do Senhor, ainda que tenham prometido firmemente isso tudo por ocasião do batismo deles.
Não instruem seus servos nos assuntos da salvação, mas desde que façam seu trabalho, não se importam. Há mais palavras de insulto em suas casas do que palavras graciosas, que tendem à edificação. Como são poucas as famílias que temem ao Senhor, e buscam na sua Palavra e junto a seus ministros sobre como devem viver, e o que devem fazer, e que estão dispostas a ser ensinadas e governadas, e buscam de coração a vida eterna! E esses poucos a quem o Senhor fez tão felizes são comumente motivo de chacota para os seus vizinhos. Quando vemos alguns vivendo na bebedeira, e outros na soberba e mundanismo, e a maior parte deles com pouca consideração pela salvação, ainda que sua situação seja, sem dúvida alguma, repulsiva, contudo, dificilmente serão convencidos de sua miséria, e muito arduamente recuperados e reformados. Mas quando fizemos tudo o que está ao nosso alcance para livrá-los de seus pecados, ainda deixamos a maior parte deles do modo pelo qual os encontramos. E se, de acordo com a lei de Deus, os excomungamos da igreja, quando tiverem obstinadamente rejeitado todas as nossas admoestações, rugem contra nós como se fôssemos seus inimigos, e seus corações se enchem de malícia contra nós, e logo se colocarão contra o Senhor e suas leis, contra a igreja e os ministros, ao invés de irem contra seus pecados mortais.
Esta é a dolorosa situação da Inglaterra. Temos magistrados que aprovam os caminhos da piedade, e uma feliz oportunidade para a unidade e reforma diante de nós, e ministros fiéis anseiam por ver a justa ordenação da igreja e das ordenanças de Deus; mas o poder do pecado em nosso povo frustra a quase todos. Em quase nenhum lugar pode o fiel ministro aplicar a inquestionável disciplina de Cristo, ou impedir o mais escandaloso dos pecadores impenitentes da comunhão da igreja e da participação nos sacramentos, sem que a maior parte do povo não se lhe oponha e o difame. Como se essas almas descuidadas e ignorantes fossem mais sábias que seus mestres, ou do que o próprio Deus! E assim, no dia da nossa visitação, quando Deus nos chama a reformar sua igreja, não obstante o poder civil pareça disposto, e ministros fiéis também, contudo, aí está a multidão de pessoas ainda indispostas, e se cegaram de tal modo, endurecendo seus corações que, até mesmo nestes dias de luz e graça, são obstinadas inimigas da luz e da graça, e não serão atraídas pelos chamados de Deus para que vejam suas tolices, e saibam o que é bom para elas. Tomara o povo da Inglaterra “conhecesse por si mesmo, ainda hoje, o que é devido à paz! Mas isso está agora oculto aos seus olhos.” (Lc 19:42)
Ó almas tolas e miseráveis! (Gl 3:1) Quem enfeitiçou suas mentes com essa loucura, e seus corações com semelhante apatia, para que fossem inimigas mortais de si mesmas? E para que insistissem tão obstinadamente no caminho da condenação, que nem a palavra de Deus, nem a persuasão dos homens, pudessem mudar suas mentes, ou segurar suas mãos, ou detê-los, até que as esperanças se fossem!
Bem, pecadores, esta vida não durará para sempre! Esta paciência não esperará enquanto vocês se demoram. Não pensem que abusarão do seu Criador e Redentor, e servirão a seus inimigos, e degradarão suas almas, e perturbarão o mundo, e ultrajarão a igreja, e reprovarão os piedosos, e entristecerão seus mestres, e impedirão a reforma, isso tudo sem um preço! Vocês ainda não sabem qual será esse preço, mas brevemente saberão, quando o justo Deus os tomar pelas mãos, e os tratar de outro modo que nem os mais incisivos dos magistrados ou os mais leais dos pastores fizeram; a menos que impeçam os tormentos eternos por uma conversão verdadeira, e uma célere obediência ao chamado de Deus. “Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça,” enquanto a misericórdia tem uma voz para clamar.
Uma objeção muito comum na boca dos ímpios, especialmente nos últimos anos é: “Não podemos fazer nada sem Deus, não podemos ter a graça se Deus não a conceder a nós. E, se Ele o fizer, rapidamente nos arrependeremos. Se não nos predestinou, e não nos conceder arrependimento, como podemos nos arrepender ou ser salvos? Não depende de quem quer ou de quem corre.” Com isso, pensam que estão escusados.
Já respondi a isso anteriormente, e neste livro. Mas, me permitam dizer o seguinte:
1. Ainda que não possam se curar, podem se ferir e envenenar a si mesmos. É Deus quem deve santificar seus corações, mas quem os corrompeu? Vocês tomarão voluntariamente veneno, porque não podem se curar? Penso que deviam abster-se ainda mais do pecado. Deviam ter ainda mais cautela dele, se não podem consertar o que o pecado estragou.
2. Ainda que não possam ser convertidos, sem a graça especial de Deus, contudo, devem saber que Deus dá a sua graça no uso dos santos meios que apontou para esse fim. E a graça comum pode lhes capacitar a resistir a seus pecados escandalosos (quanto ao aspecto exterior) e a usar esses meios. Vocês podem verdadeiramente dizer que fazem tanto quanto poderiam fazer? Não são capazes de passar pelas portas da taverna, ou resistir às companhias que lhes endurecem no pecado? Não são capazes de ouvir a Palavra, e pensar sobre o que ouviram quando chegarem em casa, e considerarem consigo mesmos sobre suas próprias condições e sobre as coisas eternas? Não são capazes de ler bons livros diariamente, ou ao menos no dia do Senhor, e de conversarem com os que são tementes a Deus? Vocês não podem dizer que já fizeram tudo de que são capazes.
3. Portanto, devem saber que podem a graça e o auxílio de Deus pela sua pecaminosidade ou negligência voluntária, ainda que não possam, sem a graça, voltar-se para Deus. Se não farão o que podem fazer, é justo que Deus lhes negue aquela graça pela qual poderiam fazer mais.
4. E, quanto aos decretos de Deus, vocês devem saber que eles não separam o fim dos meios, mais os unem em harmonia. Deus jamais decretou salvar alguém, senão os santificados, nem condenar ninguém a não ser os não santificados. Deus, em verdade, decretou também se as suas terras, neste ano, seriam estéreis ou frutíferas, e quanto tempo vocês devem viver neste mundo, do mesmo modo como decretou se deveriam ser salvos ou não. Contudo, vocês reputariam como tolo o homem que se recusasse a arar e semear, dizendo: “Se Deus decretou que meu solo produzirá cereal, ele o produzirá, quer eu o lavre e semeie ou não. Se Deus decretou que devo viver, viverei, coma eu ou não. Mas se não decretou, não é a comida que me manterá vivo.” Vocês sabem como responder a tal homem, não sabem? Se sabem, então sabem como responder a si mesmos, pois a situação é a mesma: o decreto de Deus é tão categórico em relação aos seus corpos quanto às suas almas. Se não fazem isso, então experimentem primeiro, cheguem às conclusões nos seus corpos antes de se aventurarem a testar suas almas. Vejam primeiro se Deus manterá seus corpos vivos sem comida ou vestimentas, e se lhes dará cereal sem cultivo e trabalho, ou se lhes trará ao final da viagem sem esforço ou transporte; e, se se saírem bem nisso, então testem se ele os trará aos céus sem que usem diligentemente os meios e, depois, sentem-se e digam: “Não podemos santificar a nós mesmos.”
Bem, senhores, não tenho senão três pedidos a lhes fazer, e terei concluído.
Primeiro, que leiam seriamente este pequeno tratado – se em suas famílias houver alguém necessitado dele, que leia para ele repetidas vezes – e se os que temem a Deus forem eventualmente aos seus vizinhos ignorantes, e lerem este ou algum outro livro neste assunto para eles, podem ser meios para ganhar almas. Se não pudermos implorar que os homens façam trabalho tão pequeno, para sua própria salvação, quanto lerem instruções tão curtas como estas, então eles farão pouco caso por si mesmos, e muito justamente perecerão.
Segundo, quando houverem lido por completo este livro, eu lhes imploro a ficarem a sós e ponderarem um pouco sobre o que leram, e pensem, estando na presença de Deus, se isto não é verdade, e se quase não toca suas almas, e se não é tempo de se moverem. Também lhes imploro que se coloquem de joelhos e roguem ao Senhor que abra os seus olhos para entenderem a verdade, e converta seus corações para o amor de Deus, e roguem dele todas as graças salvíficas que por tanto tempo negligenciaram, e sigam-na dia após dia, até que seus corações sejam transformados. E, ao mesmo tempo, vão aos seus pastores (que estão estabelecidos sobre vocês, para que tenham cuidado da saúde e segurança de suas almas, assim como os médicos cuidam da saúde dos seus corpos), e peçam-lhes que os orientem sobre a direção que devem tomar, e que lhes familiarizem com seus estados espirituais, para que possam desfrutar do benefício de seus conselhos e auxílios ministeriais.
Ou, se não tiverem um pastor fiel próximo, façam uso de algum outro para suprir tão grande necessidade.
Terceiro, quando pela leitura, reflexão, oração e conselho ministerial, estiverem uma vez familiarizados com seu pecado e miséria, com seu dever e cura, não adiem, mas logo esqueçam suas companhias e condutas pecaminosas, e convertam-se a Deus, e obedeçam ao seu chamado. Por amor às suas almas, cuidem de não ir contra chamado tão sonoro de Deus, e não sejam contrários ao conhecimento e às suas consciências, para que no dia do julgamento não ocorra com vocês pior do que a Sodoma e Gomorra. Investiguem sobre Deus, como um homem disposto a conhecer a verdade, e não ser um traidor voluntário de sua alma. Examinem as Escrituras diariamente, e vejam se as coisas são desse modo ou não. Testem imparcialmente se é mais seguro confiar nos céus ou na terra, e se é melhor seguir a Deus ou ao homem, ao Espírito ou à carne, e se é melhor viver na santidade ou no pecado; ou se lhes é seguro viver um dia a mais em um estado profano. E, quando descobrirem o que é melhor, ajam de acordo, e façam sua escolha sem mais delongas.
E se forem verdadeiros com suas almas, e não amarem os sofrimentos eternos, rogo-lhes, como da parte do Senhor, que nada façam senão acatar este conselho razoável. Oh! Que cidades e campos felizes, e que feliz nação teríamos, se pudéssemos persuadir as pessoas a acatarem esta atitude tão necessária! Como seriam alegres os ministros fiéis se pudessem apenas ver o seu povo verdadeiramente como pessoas celestiais e santas! Isso seria a unidade, a paz, a segurança, a glória de nossas igrejas; a felicidade de nosso próximo e o conforto de nossas almas. Então, como pregaríamos confortavelmente para vocês o perdão e a paz, e entregaríamos os sacramentos, que são os selos dessa mesma paz! E com que amor e alegria viveríamos em meio a vocês! Nos seus leitos de morte, como ousadamente poderíamos confortar e encorajar suas almas moribundas! E nos seus funerais, como seria confortável deixá-los no túmulo, na expectativa de encontrá-los nos céus, e ver seus corpos ressurretos para a glória!
Mas, se ainda a maior parte de vocês continua numa vida descuidada, ignorante, carnal, mundana e profana, e todos os nossos desejos e labores não puderam até aqui prevalecer a fim de evitar que voluntariamente condenassem a si mesmos, devemos imitar nosso Senhor, que se deleitava naqueles que são as pérolas e no pequeno rebanho que receberá o reino, quando a maior parte colherá a miséria que plantaram. Na natureza, são poucas as coisas excelentes. O mundo não tem muitos sóis ou luas. Não é senão um pouco da terra que é ouro ou prata. Príncipes e nobres são uma pequena parte dos filhos dos homens. E não é grande o número dos letrados, judiciosos e sábios neste mundo. Portanto, se estreita é a porta e muito apertada, não serão senão poucos que acharão a salvação. Mas, nestes poucos, Deus terá sua glória e prazer. E quando Cristo vier com seus anjos poderosos, em fogo chamejante, tomando vingança sobre os que não conhecem a Deus, e não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, sua vinda será glorificada nos santos, e admirada em todos os crentes verdadeiros (2 Te 1:7-10).
E para os demais, como Deus Pai condescendeu em criá-los, e Deus Filho não desprezou carregar a penalidade de seus pecados na cruz, e não reputou tais sofrimentos como vãos, ainda que soubesse que, ao recusar a santificação do Espírito Santo eles finalmente destruiriam a si mesmos, também nós, que somos seus ministros, ainda que estes não sejam reunidos, não reputaremos nosso labor como inteiramente perdido. (Is 49:5)
Leitor, terminei com você (quando tiver lido todo este livro), mas o pecado ainda terminou (mesmo aqueles que você pensa ter esquecido há muito tempo), e Satanás não terminou com você (mesmo que esteja fora de vista) e Deus ainda não terminou com você, porque você não será persuadido a terminar com o poder reinante e mortal do pecado. Escrevi-lhe estes argumentos como alguém que está indo ao outro mundo, onde se podem ver as coisas que aqui são faladas, e como alguém que sabe que brevemente você estará lá. Se alguma vez, você me encontrar com conforto diante do Senhor que nos criou; se alguma vez escapar das pragas eternas preparadas para os desprezadores finais da salvação, e para todos os que não são santificados pelo Espírito Santo, e não amam a comunhão dos santos, como membros da santa igreja universal; se alguma vez você espera ver a face de Cristo, o juiz, e a majestade do Pai, com paz e conforto, e ser recebido em glória quando partir nu deste mundo; eu lhe imploro, eu lhe responsabilizo, ouça e obedeça ao Chamado de Deus, e resolutamente se arrependa para que possa viver.
Mas, se não o fizer, mesmo que não tenha razão verdadeira para isso, senão a falta de vontade, eu o invoco a responder diante do Senhor, e lhe peço que, lá, preste testemunho sobre mim, que lhe avisei, e que você não foi condenado por falta de um chamado para se converter e viver, mas porque não creu e obedeceu a esse chamado. Isso também deverá ser o testemunho de
Seu sério Admoestador
RICHARD BAXTER

terça-feira, 30 de junho de 2015

Tentação e Livramento - Parte 2


SEÇÃO I
Por que devemos evitar as coisas que tendem ao pecado
Assim fez José, não apenas se recusou a realmente cometer impureza com sua patroa, que o provocara, mas se recusou a ficar lá, onde pudesse estar no caminho da tentação (v. 10). Recusou-se a estar com ela e a permanecer ali. E, no texto, lemos que “saiu, fugindo para fora.” (v. 12) Não ficaria de maneira nenhuma em sua companhia. Não seria pecado se José permanecesse na casa onde sua patroa estava, mas, nestas circunstâncias, isso o exporia ao pecado. Ele tinha consciência que tinha um coração corrupto, que tendia a traí-lo ao pecado; portanto, de maneira nenhuma ficaria no caminho da tentação, mas apressadamente fugiria, correria do lugar do perigo. Uma vez que estava exposto ao pecado nessa casa, fugiu dela com tanta pressa quanto teria se ela estivesse em chamas, ou repleta de inimigos com espadas afiadas para estocá-lo no coração. Quando ela o tomou pelas vestes, ele as deixou em suas mãos; preferiu perdê-las a permanecer um só momento lá, onde estaria em tamanho perigo de perder sua castidade.
Eu disse que as pessoas devem evitar as coisas que expõem ao pecado até onde for possível, porque é possível que as pessoas sejam chamadas a se expor à tentação. Quando isso ocorrer, podem esperar por fortalecimento e proteção divinas na tentação.
Pode ser o dever indispensável de um homem exercer um ofício ou trabalho acompanhado com uma grande quantidade de tentação. Assim, ordinariamente um homem não deveria correr para a tentação de ser perseguido pela causa da verdadeira religião, para que a tentação não lhe seja dura demais. Mas deve evitá-la, tanto quanto puder. Desse modo Cristo ordena a seus discípulos: “Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra.” (Mt 10.23)
Contudo, pode ser o caso que um homem não foi chamado para fugir da perseguição, mas sofrer o risco de tal provação, confiando em Deus para sustentá-lo nela. Ministros e magistrados podem ser obrigados a continuar com seu povo em tais circunstâncias, como diz Neemias: “Homem como eu fugiria?” (Nm 6.11) Da mesma maneira ocorreu com os apóstolos. Podem até mesmo ser chamados para ir ao meio dela, àqueles lugares onde não podem sensatamente esperar outra coisa senão encontrar-se com essas tentações. Assim Paulo subiu a Jerusalém, onde sabia de antemão que “me esperam cadeias e tribulações.” (At 20.23)
Da mesma forma, em alguns outros casos, a necessidade do momento pode exigir que as pessoas se comprometam em alguns negócios que são peculiarmente acompanhados com tentações. Mas quando isso ocorre estão, na realidade, minimamente expostas ao pecado; pois os mais seguros são os que estão no caminho do dever: “Quem anda em integridade anda seguro.” (Pv 10.9) Embora haja inúmeras coisas pelas quais possam ter extraordinárias tentações nos assuntos em que se empenharem, contudo, se tiverem uma vocação clara, não é presunção esperar o suporte e a preservação divina.
Mas expor-se desnecessariamente às tentações e fazer aquelas coisas que tendem ao pecado é injustificável e contrário a esse exemplo excelente diante de nós. E que deveríamos evitar não apenas aquelas coisas que são, em si mesmas, pecaminosas, mas também as coisas que levam e expõem ao pecado, evidencia-se pelos seguintes argumentos.
1. É muito evidente que deveríamos fazer uso de nossos máximos esforços para evitar o pecado. Ora, isso é inconsistente com a prática desnecessária daquelas coisas que expõem e levam ao pecado. Quanto maior é qualquer mal, maior o cuidado e mais diligente o esforço que se requer para evitá-lo. Nosso maior cuidado  é proporcional a nossa percepção da grandeza e terror dos males. Portanto, o maior dos males requer o maior e mais elevado cuidado para evitá-lo.
  O pecado é um mal infinito, pois é cometido contra um Ser infinitamente grande e excelente; é, pois, uma violação de obrigação infinita. Portanto, conquanto seja grande nosso cuidado para evitar o pecado, não pode ser mais do que proporcional ao mal que evitaremos. Nosso cuidado e esforço não podem ser infinitos, como é o mal do pecado; mas, ainda assim, deveria ser até ao limite de nossa força. Deveríamos usar cada método que tende a evitar o pecado. Isto é evidente para a razão. E não apenas a ela, mas também é positivamente requerido de nós na palavra de Deus: “Tende cuidado, porém, de guardar com diligência o mandamento e a lei que Moisés, servo do SENHOR, vos ordenou: que ameis o SENHOR, vosso Deus, andeis em todos os seus caminhos, guardeis os seus mandamentos, e vos achegueis a ele, e o sirvais de todo o vosso coração e de toda a vossa alma.” (Js 22.5) “Guardai, pois, cuidadosamente, a vossa alma...para que não vos corrompais.” (Dt 4.15,16) “Guarda-te, não te enlaces com imitá-las, após terem sido destruídas diante de ti.” (Dt 12.30) “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza.” (Lc 12.15) “Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia.” (1 Co 10.12) “Tão somente guarda-te a ti mesmo e guarda bem a tua alma.” (Dt 4.9) Estes e muitos outros textos semelhantes das Escrituras, claramente requerem de nós a máxima diligência e cuidado possíveis para evitar o pecado.
Mas, como se pode dizer para alguém que use a máxima diligência e cuidado possíveis para evitar o pecado, se essa pessoa voluntariamente faz aquelas coisas que naturalmente expõem e levam ao pecado? Como se pode dizer a alguém que com o máximo cuidado possível evite um inimigo, se essa pessoa voluntariamente se coloca no seu caminho? Como se pode dizer a alguém que use o máximo cuidado possível para preservar a vida de seu filho, se essa pessoa permite que a criança vá até a beira de precipícios ou buracos; ou brinque às margens de um grande abismo; ou passeie em uma floresta assombrada por animais predadores?
2. É evidente que deveríamos evitar as coisas que expõem e levam ao pecado, pois um senso devido da malignidade do pecado e um ódio justo dele necessariamente terão este efeito sobre nós, para fazer-nos assim proceder. Se estivéssemos devidamente sensíveis da natureza maligna e terrível do pecado teríamos sobre nossas almas enorme horror a ele. Devemos odiá-lo mais do que a morte, e temê-lo mais do que o próprio diabo, e receá-lo assim como receamos a condenação. Ora, os homens naturalmente esquivam-se das coisas que temem; e evitam as coisas que, na sua apreensão, os deixam expostos. De modo semelhante, uma criança que ficou grandemente horrorizada com a vista de uma fera selvagem, de modo algum será persuadida a se aventurar em lugares onde perceba que se colocará em seus caminhos.
Assim como o pecado em sua própria natureza é infinitamente odioso, também em sua tendência natural é infinitamente terrível. É a tendência de todo pecado arruinar eternamente a alma. Todo pecado, por natureza, carrega consigo o inferno! Portanto, todo pecado deveria ser tratado por nós como trataríamos uma coisa que seja infinitamente terrível. Se o pecado de alguém, mesmo o menor dos pecados, não traz necessariamente consigo a ruína eterna, isso se deve tão somente à livre graça e misericórdia de Deus para conosco, e não à natureza e tendência do pecado em si.
Mas certamente não deveríamos tomar menos cuidado em evitar o pecado, ou tudo aquilo que leva a ele, por causa da liberalidade e grandeza da misericórdia de Deus por nós, pela qual há esperança de perdão. Isso seria, de fato, um abuso muito ingrato e vil da misericórdia. Fosse-nos dado a conhecer que, se alguma vez voluntariamente cometêssemos qualquer ato particular de pecado, seríamos condenados sem qualquer remédio ou escape, não seríamos extremamente temerosos de cometê-lo? Não seríamos muito vigilantes e cuidadosos em permanecer a maior distância desse pecado e de qualquer coisa que pudesse nos expor a ele, ou que tivesse alguma tendência em atiçar nossas luxúrias, ou nos trair para cometermos esse ato de pecado? Consideremos, então, que, embora o próximo ato voluntário de pecado conhecido não necessária e inevitavelmente resulte em condenação certa, contudo certamente a merece. Por ele merecemos, de fato, ser rejeitados, sem qualquer remédio ou esperança; e é apenas devido à livre graça que esse pecado não é certa e irremediavelmente seguido com tal punição. E seremos culpados de abuso tão vil da misericórdia de Deus por nós, a ponto de ela nos encorajar a mais ousadamente nos expor ao pecado?
3. É evidente que devemos não apenas evitar o pecado, mas também as coisas que expõem e levam a ele, pois é desta maneira que agimos quanto às coisas que pertencem ao nosso interesse temporal.
Os homens evitam não apenas aquelas coisas que são o desastre e a ruína de seus interesses temporais, mas também as coisas que tendem ou expõem a isso. Porque amam suas vidas temporais, não apenas realmente evitarão o suicídio, mas são bastante cuidadosos em evitar aquelas coisas que trazem perigo às suas vidas, embora nem sempre saibam se é certo que possam escapar. São cuidadosos em não atravessar rios e águas profundas sobre o gelo derretido, embora não saibam com certeza se não cairão e se afogarão. Não apenas evitarão aquelas coisas que seriam elas mesmas a ruína de suas propriedades – como pôr fogo em suas casas, e queimá-la totalmente com suas posses; pegar seu dinheiro e atirá-lo ao mar, etc. – mas cuidadosamente evitam aquelas coisas pelas quais suas propriedades são expostas. Vigiam-nas; são cuidadosos em escolher seus parceiros de negócios; são vigilantes que não sejam logrados em seus negócios, e procuram não se expor a pessoas tratantes e fraudulentas.
Se alguém estiver doente de uma enfermidade perigosa, cuida de evitar tudo que tende a agravar a doença; não apenas aquilo que sabe ser mortal, mas outras coisas que teme lhe possam ser prejudiciais. Os homens, por este modo, são afeitos a cuidar de seu interesse temporal. Portanto, se não formos tão cuidadosos em evitar o pecado, como somos em evitar o prejuízo de nosso interesse temporal, isso evidenciará uma disposição despreocupada com respeito ao pecado e ao dever; ou que não nos importamos tanto com o fato de pecarmos contra Deus. A glória de Deus é certamente de tanta importância e cuidado quanto nosso interesse temporal. É certo que deveríamos ser tão cuidadosos em não nos expor a pecar contra a Majestade do céu e terra, quanto os homens são propensos a cuidar de algumas poucas libras. Na verdade, estas últimas são apenas bagatelas comparadas com a primeira.
4. Somos afeitos a proceder desse modo pelos nossos queridos amigos terrenos.
Não somos apenas cuidadosos daquelas coisas que diretamente ameace a destruição de suas vidas, ou o seu prejuízo e calamidade. Mas somos cuidados em evitar as coisas que mesmo remotamente tendam a isso. Somos cuidadosos em prevenir todas as ocasiões que lhes representem perda; somos vigilantes contra aquilo que tende, de qualquer forma, a privá-los de seu conforto ou bom nome. E a razão é que eles nos são muito queridos. Desta forma, os homens são afeitos a ser cuidadosos do bom nome de seus filhos, e temem a aproximação de qualquer dano a que receiam estejam ou possam estar expostos. E ficaríamos muito tristes se nossos amigos não fizessem o mesmo conosco.
Certamente, deveríamos tratar Deus como um amigo querido. Deveríamos agir com relação a ele como quem lhe tem um amor sincero e cuidado não fingido. Assim, devemos vigiar e ser cuidadosos contra todas as ocasiões daquilo que é contrário a sua honra e glória. Se não for nossa índole e desejo assim o fazer, isso mostrará que, sejam quais forem nossas pretensões, não somos amigos sinceros de Deus, e não lhe temos verdadeiro amor. Se alguém nos tratasse desta maneira e não fosse cuidadoso de nossos interesses, ficaríamos ofendidos se esses tivessem professado amizade a nós; então, certamente, Deus pode justamente se ofender que não somos mais cuidadosos de sua glória.
5. Gostaríamos que Deus, em sua providência para conosco, não ordene aquelas coisas que tendem ao nosso prejuízo, ou exponha nossos interesses. Portanto, certamente deveríamos evitar aquelas coisas que levam ao pecado contra ele.
Desejamos e amamos ter a providência de Deus em relação a nós disposta de tal maneira que nosso bem estar seja assegurado. Homem algum ama ser exposto, viver na incerteza e em circunstâncias perigosas. Enquanto assim está, vive desconfortavelmente, pois vive em medo contínuo. Desejamos que Deus disponha as coisas a nosso respeito de tal maneira que possamos estar livre do temor do mal, e que mal algum se aproxime de nossas habitações; isso porque tememos a calamidade. Não amamos a aparência e aproximação desta, mas amamos que esteja a grande distância de nós. Desejamos que Deus nos seja como uma muralha de fogo ao nosso redor, para nos defender; e que nos cerque como as montanhas cercam o vale, para nos guardar de todo perigo ou inimigo, e que, desse modo, mal algum nos alcance.
Agora, isso nos mostra claramente que deveríamos, em nossa postura em relação a Deus, manter uma grande distância do pecado e de tudo o que expõe a ele, assim como desejamos que Deus, em sua providência conosco, mantenha a calamidade e a miséria a grande distância de nós, e não ordene que estas coisas exponham nosso bem estar.
6. Visto que devemos orar que não entremos em tentação, certamente não deveríamos nós mesmos correr para ela.
Esta é uma petição que Cristo nos orienta a fazer naquela forma de oração que ensinou aos discípulos: “Não nos deixe cair em tentação.” Quão inconsistentes seremos com nós mesmos se orarmos a Deus que não sejamos conduzidos à tentação, e, ao mesmo tempo, não formos cuidadosos em evita-la, mas nos conduzirmos a ela, fazendo aquelas coisas que levam e expõem ao pecado? Que autocontradição é para um homem orar a Deus que seja guardado daquilo que não toma cuidado algum em evitar! Orando que sejamos guardados da tentação, professamos a Deus que estar em tentação é algo a ser evitado; mas, ao correr para ela, mostramos que escolhemos o contrário, isto é, não evitá-la.
7. O apóstolo nos aconselha a evitar aquelas coisas que são em si mesmas lícitas, mas tendem a levar os outros ao pecado. Certamente, então, devemos evitar o que nos leva a nós mesmos ao pecado. O apóstolo aconselha: “Vede, porém, que esta vossa liberdade não venha, de algum modo, a ser tropeço para os fracos.” (1 Co 8.9) “Tomai o propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão.” (Rm 14.13) “Se, por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor fraternal. Por causa da tua comida, não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu.” (Rm 14.15) “Não destruas a obra de Deus por causa da comida. Todas as coisas, na verdade, são limpas, mas é mau para o homem o comer com escândalo. É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar ou se ofender ou se enfraquecer.” (Rm 14.20,21) Ora, se esta regra do apóstolo for conforme a Palavra de Cristo, como devemos supor, ou ao contrário deveríamos expurgar o que ele diz do cânon da Escritura, então, uma regra semelhantes obriga mais fortemente naquelas coisas que tendem a nos levar a nós mesmos ao pecado.
8. Há muitos preceitos da Escritura que direta e positivamente implicam que devemos evitar aquelas coisas que tendem ao pecado.
É exatamente isso que é ordenado por Cristo em Mateus 26.41, onde nos orienta a “Vigiar e orar, para que não entremos em tentação”. Mas, certamente, nos atirarmos à tentação é o oposto de vigiar contra ela. Somos ordenados a nos abster de toda aparência do mal, isto é, fazer com o pecado o mesmo que alguém faz com uma coisa cuja visão ou aparência abomine. Portanto, evitará qualquer coisa que se assemelhe com ela, e não se aproximará nem ficará a ela exposto.
Novamente, Cristo ordena que separemos de nós as coisas que são pedras de tropeço, ou ocasiões para o pecado, por mais queridas que nos sejam. “Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti”. (Mt 5.29)  “E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti”. (Mt 5.30) Pela mão direita que nos ofende, não quer dizer que ela nos cause dor; mas a palavra no original significa ser uma pedra de tropeço, isto é, corta-a, se tua mão direita se provar uma pedra de tropeço, ou ocasião para a queda, isto é, uma ocasião para o pecado.
As coisas que servem de ocasião para o pecado são chamadas de pedra de tropeço no Novo Testamento. Cristo nos diz que devemos evitá-las, por mais queridas que nos sejam, ainda que sejam tão caras quanto nossa mão ou olho direitos. Se houver qualquer prática que naturalmente tenda e exponha ao pecado, devemos nos livrar dela, ainda que nos seja extremamente amável, e estejamos muito relutantes em dispensá-la. Devemos fazê-los, ainda que seja tão contrário à nossa inclinação, como é cortar nossa própria mão direita, ou arrancar nosso olho direito, e isso pela dor da condenação; pois nos é declarado que se não o fizermos, devemos ir com as duas mãos e os dois olhos para o fogo do inferno.
Também Deus teve grande cuidado em proibir aos filhos de Israel aquelas coisas que tendiam a levar ao pecado. Por esta razão, proibiu que casassem com mulheres estrangeiras: “Nem contrairás matrimônio com os filhos dessas nações; não darás tuas filhas a seus filhos, nem tomarás suas filhas para teus filhos; pois elas fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do SENHOR se acenderia contra vós outros e depressa vos destruiria.” (Dt 7.3-4) Por essa razão, foram ordenados a destruir todas aquelas coisas que as nações de Canaã usaram em sua idolatria, e se alguém fosse inclinado à idolatria, deveria ser destruído sem piedade, ainda que fosse o mais querido e próximo dos amigos. Deveriam não apenas ser entregues, mas apedrejados; sim, eles próprios deveriam cair sobre eles e leva-los à morte, mesmo que fosse filho ou filha, ou um amigo do peito: “Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu amigo que amas como à tua alma te incitar em segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses, que não conheceste, nem tu, nem teus pais”. (Dt 3.6)
Ademais, o sábio nos adverte a evitar aquelas coisas que tendem e expõem ao pecado, especialmente o pecado da impureza: “Tomará alguém fogo no seio, sem que as suas vestes se incendeiem? Ou andará alguém sobre brasas, sem que se queimem os seus pés? Assim será com o que se chegar à mulher do seu próximo; não ficará sem castigo todo aquele que a tocar”. (Pv 6.27,29) A verdade aqui apresentada é: evite aqueles costumes e práticas que naturalmente tendem a provocar a luxúria.
E há muitos exemplos na Escritura, que têm a força de preceito, registrados não apenas por seu valor, mas para nossa imitação. A conduta de José é um desses, e a do Rei Davi é outro: “Disse comigo mesmo: guardarei os meus caminhos, para não pecar com a língua; porei mordaça à minha boca, enquanto estiver na minha presença o ímpio. Emudeci em silêncio, calei acerca do bem, e a minha dor se agravou.” (Sl 39.1,2) Até mesmo acerca do bem! Ou seja, estava tão vigilante com suas palavras, e guardado a tal distância de falar o que pudesse de qualquer modo levá-lo ao pecado, que evitava em certas circunstâncias, falar o que era em si mesmo lícito; para que não fosse traído em direção àquilo que fosse pecaminoso.
9. Um senso prudente de nossa fraqueza e exposição para ceder à tentação nos obriga a evitar aquilo que leva e expõe ao pecado.
Quem quer que se conheça e esteja sensível do quão fraco é sabe como seu coração está cheio de corrupção, esse mesmo que, como combustível, está pronto a pegar fogo e trazer a destruição sobre si; sabe o quanto há dentro de si que o inclina ao pecado, e como é incapaz de sustentar-se a si mesmo. Quem está sensível disso, e tem alguma preocupação com seu dever, acaso não será bastante vigilante contra qualquer coisa que possa levá-lo e expô-lo ao pecado? Por este motivo, Cristo nos orienta: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação”. (Mt 26.41) A razão é acrescentada: a carne é fraca! Aquele que, confiando em sua própria força, ousadamente aventura-se no pecado, entrando em tentação, manifesta grande presunção e uma insensibilidade embrutecida de sua própria fraqueza. “O que confia no seu próprio coração é insensato.” (Pv 28.26)
Os mais sábios e mais fortes, e alguns dos mais santos homens no mundo, foram derrubados por essas coisas. Assim foi com Davi; assim foi com Salomão: suas mulheres perverteram seu coração. Se pessoas tão eminentes por sua santidade quanto essas foram desse modo levadas ao pecado, certamente deve servir de aviso para nós. “Aquele que pensa estar de pé, veja que não caia.”