AS MAIORES REALIZAÇÕES OU SOFRIMENTOS
SÃO VÃOS SEM A CARIDADE
1
Coríntios 13:3
“E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para
sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e
não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria.”
N
|
os versículos anteriores deste
capítulo, a necessidade e excelência da caridade são apresentadas, como vimos,
pela sua precedência sobre os maiores privilégios, e devido à completa
futilidade e insignificância destes sem ela. Os privilégios mencionados em
particular são aqueles que consistem nos dons extraordinários do Espírito de
Deus. Neste versículo, coisas de outro tipo são mencionadas, isto é, coisas de
natureza moral. É declarado que
nenhuma dessas é útil sem a caridade. E, particularmente,
Primeiro, que
nossas realizações são vãs sem ela. Eis
um dos tipos mais elevados de realizações exteriores mencionadas, isto é, dar
todos os bens para alimentar os pobres. Dar ao pobre é um dever muito insistido
na Palavra de Deus, e, em particular, sob a dispensação cristã. Nos tempos do
cristianismo primitivo, as circunstâncias da Igreja eram tais que pessoas eram
por vezes chamadas a dividir tudo o que tinham e dar aos outros. Isso ocorria,
em parte, devido às extremas necessidades daqueles que eram perseguidos e
sofriam aflições, e, em parte, por que as dificuldades que acompanhavam o
seguir a Cristo e fazer a obra do evangelho eram tais que obrigavam os
discípulos a desembaraçar-se do cuidado e peso das posses mundanas, e a seguir
em frente, por assim dizer, sem ouro ou prata nas suas bolsas, ou alforje, ou
até mesmo duas capas.
O apóstolo
Paulo nos diz que sofreu a perda de todas as coisas por Cristo; e os cristãos
primitivos, na igreja de Jerusalém, vendiam tudo o que tinham, e depositavam
num fundo comum, e “ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas
que possuía” (Atos
4.32).
O dever de
dar ao pobre era o que os cristãos coríntios, desta vez, tinham ocasião especial
para considerar; não apenas devido aos muitos problemas dos tempos, mas também
devido à grande penúria ou fome que enormemente afligia os irmãos da Judeia.
Por essa causa, o apóstolo já havia rogado aos coríntios, como dever deles,
enviar-lhes alívio, falando disso particularmente nesta epístola, no capítulo
16 (e também na sua segunda epístola à mesma igreja, no oitavo e nono capítulos).
E ainda assim, embora diga tanto, em ambas as epístolas, para animá-los ainda
mais no dever de dar aos pobres, é ainda bem cuidadoso em informá-los de que,
embora devessem sempre avançar nisso, embora devessem contribuir com todos os
seus bens para alimentar os pobres, se
não tivessem caridade, isso de nada adiantaria.
Segundo, o
apóstolo ensina que não apenas nossas realizações, mas também nossos sofrimentos são vãos sem a caridade. Os
homens são rápidos em superestimar o que fazem,
mas ainda mais o que sofrem. São rápidos
em reputar como algo grandioso quando se colocam nesse caminho, ou têm grandes
custos ou sofrimentos por sua religião. O apóstolo aqui menciona um sofrimento
do mais extremo tipo, sofrimento até a morte, e mesmo os tipos mais terríveis
de morte; e diz que mesmo isso é nada sem a caridade. Quando alguém deu todos
os seus bens, nada tem mais para dar, a não ser a si mesmo. E o apóstolo ensina
que, quando um homem deu todas as suas posses, se ele prossegue para dar o
próprio corpo, mesmo para ser consumido pelas chamas, não valerá de nada, se
não for feito por amor sincero no coração.
O apóstolo
escreveu aos coríntios em um tempo em que os cristãos eram com frequência
chamados não apenas para dar seus bens, mas também seus corpos, pela causa de
Cristo. Pois a igreja, à época, estava geralmente sob perseguição, e multidões
foram, então, ou logo depois, levadas à morte pelos meios mais cruéis, pela
causa do evangelho. Mas, embora sofressem em vida, ou suportassem a morte mais
agonizante, seria tudo em vão sem a caridade.
O que se
quer dizer por essa caridade já foi explicado nos discursos anteriores sobre
estes versos, nos quais foi mostrado que a caridade é a soma de tudo o que é
distinto na religião do coração.
Portanto, a
doutrina que derivarei destas palavras é esta:
TUDO QUE OS HOMENS POSSAM
FAZER, E TUDO QUE POSSAM SOFRER, JAMAIS PODE SUBSTITUIR A NECESSIDADE DO AMOR
CRISTÃO SINCERO NO CORAÇÃO.
I. Pode haver grandes realizações, bem como
grandes sofrimentos, sem o amor cristão sincero no coração.
1. Pode
haver grandes realizações sem o amor.
O apostolo Paulo, no terceiro capitulo da epístola aos Filipenses, nos conta as
coisas que fez antes de sua conversão, enquanto era um fariseu. No quarto versículo
diz: “Se algum outro cuida que pode confiar na carne, ainda mais eu.” Muitos
dos fariseus fizeram grandes coisas, e abundaram nas realizações religiosas. O
fariseu mencionado em Lucas 18.11,12, se gabava das grandes coisas que fizera,
tanto para com Deus quanto para com os homens, e agradecia a Deus por ter
excedido nisso os outros homens.
Muitos dos
pagãos foram eminentes por suas realizações, alguns por sua integridade, ou por
sua justiça, e ainda outros por suas grandes obras pelo bem público. Muitos homens,
sem qualquer sinceridade de amor nos corações, têm sido muito magnânimos nas
suas ofertas para usos piedosos e filantrópicos, e trouxeram para si fama
renomada, e tiveram seus nomes registrados na história, para a posteridade, com
grande glória. Muitos fizeram grandes coisas por temerem o inferno, esperando
dessa forma aplacar a Deidade e fazer expiação por seus pecados, e muitos
fizeram grandes coisas pelo orgulho, movidos por um desejo de reputação e honra
entre os homens.
Embora esses
motivos não costumem influenciar os homens a uma obediência total e constante
dos mandamentos de Deus, e a persistir em um curso de realizações cristãs, e
com a prática de todos os deveres devidos a Deus e ao homem, por toda a vida,
contudo, é difícil dizer o quão longe esses princípios naturais podem levar os
homens em deveres e realizações particulares. E assim,
2. Pode
haver grandes sofrimentos pela
religião, contudo sem sinceridade no coração. Pessoas podem suportar grandes
sofrimentos na vida, assim como os fariseus costumavam se impor grandes
severidades, penitências e inflições voluntárias.
Muitos
realizaram cansativas peregrinações, e se privaram dos benefícios e prazeres da
sociedade humana, ou passaram suas vidas nos desertos e na solidão; alguns
suportaram a morte, dos quais não há motivo para pensar que não tivessem amor
sincero por Deus no coração. Multidões entre os papistas foram e aventuraram
voluntariamente suas vidas nas guerras santas, esperando merecer o céu por isso.
Nas guerras com os turcos e sarracenos, chamadas de guerras santas ou Cruzadas,
milhares foram voluntariamente a todos os perigos do conflito, na esperança de
assim assegurar o perdão dos seus pecados e as recompensas da gloria porvir.
Muitos milhares, até mesmo alguns milhões, perderam as vidas nesses caminhos,
ao ponto de haver perda considerável de população em muitas partes da Europa.
Muitos dos
turcos estavam extremamente enfurecidos, a ponto de aventurar suas vidas, e
apressar-se, por assim dizer, em direção às espadas dos inimigos, porque Maomé
prometeu que todos que morressem na guerra, na defesa da fé muçulmana, iriam
imediatamente ao Paraíso.
A história
nos conta de alguns que se entregaram voluntariamente à morte, devido à mera
obstinação e teimosia de espírito, ao invés de cederem às ordens de outros,
quando poderiam, sem desonra, salvar suas vidas. Muitos entre os pagãos
morreram por seus países, e muitos mártires por uma falsa fé, embora jamais no
mesmo número, nem da mesma forma que os que pereceram mártires pela verdadeira
religião. E em todos estes casos, muitos sem dúvidas suportaram esses
sofrimentos, ou encontraram a morte, sem ter qualquer amor divino sincero nos
seus corações. Mas,
II. O
que quer que os
homens possam fazer ou sofrer,
não podem, por todas as suas realizações e sofrimentos, substituir a falta de amor
sincero no coração.
Se
eles sempre se disporem nas coisas da religião; e se
sempre forem muito envolvidos em atos de justiça, bondade e devoção; e se suas orações e jejuns forem sempre muito multiplicados; ou se gastarem sempre seu
tempo assim nas formas de culto
religioso, concedendo a ele dias e noites, e negando sono aos
olhos e descanso para as suas pálpebras, para que sejam mais
operantes nos exercícios religiosos, e se as coisas que fizerem na religião forem suficientes para garantir-lhes um nome em todo o mundo e torná-los
famosos por todas as gerações futuras,
tudo seria vão sem
amor sincero para com Deus no coração.
Por isso, se um
homem doar mais
liberalmente para usos religiosos
ou de caridade; e se, possuindo as riquezas
de um reino, doar tudo, e, do
esplendor de um príncipe terreno,
reduzir-se a um nível de mendigos, e se ele não deva
parar por aí, mas quando tiver feito isso tudo,permitir-se sofrer os mais agudos sofrimentos, dando não só todos os seus bens, mas também o
seu corpo para ser vestido por trapos, ou para ser mutilado, queimado e atormentado tanto quanto a sagacidade do homem possa conceber,
mesmo tudo isso não iria compensar a falta de amor
sincero para com Deus no coração.
E é claro que não
iria, pelas seguintes razões:
1. Não é o trabalho
externo feito, ou os sofrimentos suportados, que são, em si, dignos de algo
diante de Deus.
Os movimentos e exercícios do corpo, ou qualquer coisa
que possa ser feita por ele, se considerados separadamente do coração - a parte
interior do homem - não é de mais conseqüência ou valor à vista de Deus do que
os movimentos das coisas inanimadas. Se algo for oferecido ou dado, ainda que
seja de prata ou de ouro, ou o gado de mil pastos, ainda que seja mil
carneiros, ou dez mil rios de óleo, não há nada de valor neles, como coisa
externa, aos olhos de Deus. Se Deus tivesse necessidade dessas coisas, poderiam
ser de grande valor para ele, consideradas em si mesmas, independentemente dos
motivos do coração que levaram à sua oferta.
Nós muitas vezes necessitamos de coisas boas externas e,
portanto, essas coisas, oferecidas ou dadas a nós, podem e têm valor para nós,
consideradas em si mesmas. Mas Deus não tem necessidade de nada. Ele é
todo-suficiente em si mesmo. Ele não é alimentado pelos sacrifícios de animais,
nem enriquecido pela oferenda de prata ou ouro, ou pérolas: “Todos os animais
da floresta são meus, e o gado sobre milhares de montanhas. Se eu tivesse fome,
não to diria, pois o mundo é meu, e toda a sua plenitude” (Sl 50:10, 12).
“Todas as coisas vêm de ti, e do que é teu to damos. Ó Senhor, nosso Deus, toda
esta abundância, que preparamos para te edificar uma casa ao teu santo nome,
vem da tua mão, e é toda tua.” (1 Cr. 29:14, 16).
Como não há nada rentável para Deus em qualquer dos
nossos serviços ou desempenhos, por isso não pode haver nada aceitável à sua vista em uma mera ação externa sem amor sincero no coração, “pois o Senhor não vê como vê o homem, pois o homem olha o
exterior, mas Deus olha para o coração.” O coração é tão nu e aberto para ele
como as ações externas. E, portanto, ele vê nossas ações, e toda a nossa
conduta, não apenas como os movimentos externos de uma máquina, mas, como as
ações de criaturas racionais, inteligentes e voluntárias, agentes livres; portanto,
não pode haver, em sua estima,
excelência ou amabilidade em qualquer coisa que possamos fazer, se o
coração não for justo diante dele.
Deus não tem prazer em quaisquer sofrimentos que possamos
suportar, em si mesmos considerados. Ele não ganha com os tormentos que os homens possam sofrer, nem
se delicia ao vê-los expondo-se ao sofrimento, a não ser que seja por algum bom
motivo, ou para algum bom propósito e fim. Por vezes, pode ser preciso que
nossos semelhantes, amigos e vizinhos, sofram por nós, e nos ajudem a suportar
nossos fardos, e sofram inconveniências para o nosso bem. Mas Deus não tem essa
necessidade de nós; portanto, os nossos sofrimentos não são aceitáveis para ele, considerados meramente como sofrimentos
suportados por nós, e não têm significado para além do motivo que nos leva a
suportá-los. Não importa o que possa ser feito ou sofrido: nem obras, nem sofrimentos
irão compensar a falta de amor a Deus na alma. Eles não são proveitosos para Deus, nem amáveis por si mesmos à sua vista. Nem podem
substituir a ausência do amor a Deus e aos homens, que é a soma de tudo o que
Deus requer de suas criaturas morais.
2. O que quer que
se faça ou sofra, contudo, se o coração estiver afastado de Deus, nada é realmente
dado a ele.
O ato de um indivíduo, naquilo que faz ou sofre, é em
toda situação reputado não como o ato de um mecanismo sem vida ou de uma máquina,
mas como o ato de um ser inteligente, voluntário e moral. Pois, certamente, uma
máquina não é propriamente capaz de oferecer alguma coisa: e se essa máquina,
que não tem vida, sendo movida por molas ou cargas, coloca algo diante de nós,
não se pode dizer propriamente que ela nos deu algo. Harpas e címbalos, e outros
instrumentos musicais, eram há muito tempo usados no louvor a Deus no templo e
em outras partes. Mas não se poderia dizer que esses instrumentos sem vida
davam louvores a Deus, porque não tinham pensamento, nem entendimento, vontade,
ou coração para acrescentar valor aos seus sons agradáveis.
Logo, ainda que um homem tenha um coração, um
entendimento e uma vontade, contudo, se quando dá algo a Deus, dá-lhe sem seu
coração, verdadeiramente nada é dado a Deus mais do que é dado pelo instrumento
musical. Aquele que não tem sinceridade em seu coração, não tem real respeito por
Deus naquilo que aparenta dar, ou em todas as suas realizações ou sofrimentos,
porquanto Deus não é seu fim principal naquilo que faz ou dá. O que é dado, é
dado para aquilo que o indivíduo toma como seu grande fim em dar. Se seu fim
for ele próprio apenas e não Deus, e se seu objetivo for sua própria honra ou
comodidade, ou o ganho mundano, então a oferta é apenas um oferecimento a essas
coisas. O presente é uma oferta àquele a quem se devota o coração do doador, e
a quem ele o designa. É o alvo do coração que faz a realidade do presente; e se
o alvo sincero do coração não for Deus, então, na realidade, nada lhe é dado,
não importa o que se faça ou sofra. De modo que seria um grande absurdo supor
que qualquer coisa que possa ser ofertada
ou dada a Deus, possa substituir a ausência de amor por ele no coração;
pois, sem isso, nada é realmente dado, e o aparente presente é tão somente
zombaria ao Altíssimo. Isto se evidencia ainda mais,
3. Pelo fato de que
esse amor, ou caridade, ser a suma de tudo o que Deus requer de nós.
É absurdo supor que algo possa substituir a falta daquilo
que é a soma de tudo o que requer. A
caridade ou amor é algo que tem sua sede no coração, e na qual, como vimos,
consiste tudo o que é salvífico e distinto no caráter cristão. Este é o amor de
que nosso Salvador fala como a soma de tudo requerido nas duas tábuas da lei; e
que o Apóstolo declara que é o cumprimento da lei. E como podemos substituir o efeito, quando, por sustentá-lo, nós,
com efeito, sustentamos a soma de tudo o que Deus requer de nós? Seria absurdo
supor que possamos substituir algo que é requerido oferecendo outra coisa que
[também] é requerida – que possamos substituir uma dívida pagando outra.
Mas é absurdo ainda maior supor que possamos substituir
toda a dívida sem pagar nada, mas persistindo em reter tudo o que é requerido.
Quanto às coisas externas, sem o coração, Deus fala delas não como sendo as
coisas que requer (Is 1:12), e exige que o coração lhe seja dado, se quisermos
que a oferta externa seja aceita.
4. Se fizermos uma
grande exibição de respeito e amor a Deus, em ações externas, enquanto não houver
sinceridade no coração, isso é apenas hipocrisia e, na prática, é mentir ao
Santo.
Fingir esse respeito e amor, quando não sentido no
coração, é agir como se pudéssemos enganar a Deus. É fazer como Israel, no
deserto, após ter sido liberto do Egito, quando se diz que eles “lisonjeavam-no com a boca e com a língua lhe mentiam.” (Sl 78:36) Mas, certamente, é absurdo que
possamos substituir a falta de respeito sincero pela lisonja e fraude, a ponto
de supor que possamos substituir a falta da verdade pela falsidade e mentira.
5. O que quer que
possa ser feito ou sofrido, se não houver sinceridade no coração, é tão somente
oferta a algum ídolo.
Como anteriormente
observado, não há nada, no caso suposto, realmente ofertado a Deus, portanto,
segue-se que é ofertado a algum outro ser, objeto ou fim; e seja lá o que isso
for, é o que as Escrituras chamam de ídolo. Em todas as ofertas semelhantes a
essa, algo é virtualmente adorado, e seja o que for, seja o eu, nossos
semelhantes ou o mundo, permite-se que isso
usurpe o lugar que deveria ser dado a Deus, e receba as ofertas que lhe
deveriam ser feitas. E como é absurdo supor que possamos substituir a retenção
daquilo que é devido a Deus, ofertando algo a nosso ídolo! É tão absurdo quanto
supor que a esposa possa substituir a falta de amor a seu marido dando sua
afeição que lhe é devida a outro homem, que é um estranho; ou que ela possa
substituir a sua falta de fidelidade a ele pela culpa do adultério.
Na aplicação
desse assunto, incumbe-nos usá-lo,
1. Como forma de autoexame.
Se for assim de fato de que tudo o que possamos fazer ou
sofrer é vão, se não houver amor sincero a Deus no coração, então isso deve nos
levar a sondar a nós mesmos quanto a se temos ou não este amor em sinceridade
em nossos corações.
Há muitos que fazem profissão e amostra de religião, e
alguns que fazem muitas das coisas externas que ela requer; e é possível que
pensem que tenham feito e sofrido muito por Deus e pelo seu serviço. Mas, a
grande questão é: o coração tem sido sincero nisso tudo, e tem sofrido ou agido
pelo respeito à glória divina?
Sem dúvida, se examinarmos a nós mesmos, podemos ver
muita hipocrisia. Mas há alguma sinceridade? Deus abomina as maiores coisas sem
sinceridade, mas aceita e se deleita nas coisas pequenas quando fluem do amor
sincero a ele. Um copo de água fria, dado a um discípulo em amor sincero, é
mais digno à vista de Deus do que alguém dar todos os bens para alimentar o
pobre, sim, do que entregar a riqueza de um reino, ou oferecer o corpo às
chamas, sem amor. E Deus aceita até mesmo um pequeno, mas sincero, amor. Ainda
que haja muita imperfeição, mas, se houver qualquer sinceridade verdadeira em
nosso amor, esse pouco não será rejeitado porque haja alguma hipocrisia nele. E
aqui pode ser útil observar que há estas quatro coisas que pertencem à natureza
da sinceridade, isto é, verdade, liberdade, integridade e pureza.
Primeiro, verdade.
Ou seja, que deva haver verdadeiramente no coração aquilo que aparece e se
exibe na ação externa. Onde há, de fato, verdadeiro respeito a Deus, o amor que
o honra será sentido no coração, tão extensamente quanto há exibição dele em
palavras e atos. Nesse sentido, é dito no Salmo 51, “Eis que te comprazes na verdade no íntimo” E, é nesse
sentido que se fala da sinceridade nas Escrituras como oposta à hipocrisia, e
que se diz que um cristão sincero é alguém que é, de fato, como aparenta ser –
alguém “sem dolo.” (Jo 1:47)
Examine a si mesmo, portanto, com respeito a essa
questão. Se em suas ações externas houver uma aparência ou exibição de respeito
a Deus, investigue se isso é apenas externo, ou se é sinceramente sentido no coração;
pois sem amor ou caridade verdadeiros você nada é.
A segunda coisa na natureza da sinceridade é a liberdade. Quanto a isso, especialmente,
a obediência a Cristo é chamada de filial, ou obediência de filho, pois é uma obediência
inocente e livre, e não legal, servil e forçada; mas é algo que é realizado
pelo amor e com prazer. Deus é escolhido por si mesmo; e a santidade por si
mesma, e por causa de Deus. Cristo é escolhido e seguido porque é amado, e a
religião porque é amada, e a alma nela se regozija, achando em seus deveres a
mais alta felicidade e prazer.
Examine a si mesmo fielmente quanto a este ponto, se esse
é ou não o seu caráter.
A terceira coisa que pertence à natureza dessa
sinceridade é a integridade. A
palavra significa totalidade [wholeness] intimando que onde esta
sinceridade existe, Deus é buscado, e a religião é escolhida e abraçada com
todo o coração, e aderida com toda a alma. A santidade é escolhida com todo o
coração. O todo do dever abraçado, e abordado muito cordialmente, quer diga
respeito a Deus, quer ao homem, seja fácil ou difícil, tenha referência às
pequenas ou às grandes coisas. Há proporção e plenitude no caráter. Todo o
homem é renovado. O corpo inteiro, a alma e o espírito são santificados. Cada
membro é entregue à obediência de Cristo. Todas as partes da nova criatura são
trazidas em obediência à sua vontade. As sementes de todas as santas
disposições são implantadas na alma, e elas irão mais e mais produzir frutos na
realização do dever para a glória de Deus.
A quarta coisa que pertence à natureza da sinceridade é a
pureza. A palavra sincero
frequentemente significa puro. Assim ocorre em 1 Pedro 2.2: “Desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno
leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação,” i. e. puro, sem mistura, não adulterado.
Isto aparece na oposição da virtude ao pecado. Um é referido como corrupção,
impureza e imundície; o outro, como aquilo que está livre dessas coisas. O
apóstolo compara o pecado a um corpo de morte, ou a um corpo morto, que é a mais
poluída e contaminada de todas as coisas, enquanto a santidade é referida como
pureza e as delícias santas como delícias puras, e os santos no céu como sem
mácula diante do trono de Deus. Investigue, então, se essa pureza lhe pertence,
e se estiver em sua posse, você encontrará a evidência de que ama sinceramente
a Deus.
Este assunto pode também,
2. Convencer
aqueles que ainda se encontram em um estado não regenerado, de sua condição
perdida.
Se for assim, de fato, que por tudo o que possa ou fazer
ou sofrer, você não pode substituir a falta de um amor santo e sincero em seu
coração, então, segue-se que você se encontra em uma arruinada condição até que
tenha obtido a graça regeneradora de Deus para renová-lo a um espírito reto no
seu interior. Faça o que desejar, ou suporte e sofra o que quiser, você não
pode ser libertado de sua impiedade sem a graça regeneradora de Deus. Se você
abundar em orações, isso não fará sua situação menos miserável, a menos que Deus,
pelo seu grande poder, se agradar em lhe dar um novo coração. Se você se
esforçar sobremodo na religião, e opor-se e negar a si mesmo, e fizer ou sofrer
o máximo, tudo será vão sem aquele amor.
Portanto, o que quer que tenha feito, ainda que possa se reportar
a um grande número de orações oferecidas, e muito tempo gasto na leitura e
meditação, você não tem razão em pensar que essas coisas fizeram qualquer
expiação pelos seus pecados, ou tornaram sua situação menos deplorável, ou lhe
deixaram em outra situação que não a de uma criatura miserável, perdida, infeliz,
culpada e arruinada.
Os homens naturais, não regenerados, ficariam felizes em
ter algo para substituir a falta do amor sincero e da graça real em seus
corações. Muitos, de fato, fazem grandes coisas para substituir essa falta,
enquanto outros estão dispostos a sofrer grandes coisas. Mas, infelizmente,
como isso tudo é insignificante! Não importa o que possam fazer ou sofrer, isso
não muda seu caráter. Se construírem suas esperanças sobre isso, nada fazem
senão iludir-se, e alimentar-se com o vento oriental.
Se esse for o seu caso, considerem como serão miseráveis
enquanto viverem sem esperança na única fonte verdadeira de esperança, e como
serão miseráveis quando vierem a morrer, quando a visão da rainha dos terrores,
[a morte], lhes mostrar a nulidade e vaidade de todos os seus atos! Como serão
miseráveis quando virem Cristo vindo para o julgamento nas nuvens do céu! Então
estarão dispostos a fazer e sofrer qualquer coisa, para que sejam aceitos por
ele. Mas ações ou sofrimentos não aproveitarão. Não expiarão os seus pecados,
nem lhes darão o favor de Deus, nem lhes salvarão das esmagadoras tempestades
de sua ira. Portanto, não descansem em nada que tenham feito ou sofrido, ou que
possam fazer ou sofrer; descansem apenas em Cristo. Que seu coração seja cheiro
de amor sincero a ele; e, então, no grande último dia, ele o admitirá como seu
seguidor e amigo.
O assunto também,
3. Exorta a todos, a ardentemente acalentar o
amor cristão sincero em seus corações.
Se assim for que isso seja de necessidade tão grande e
absoluta, então, que isso seja a coisa maior que vocês busquem. Com diligência
e oração, busque-a; e busque-a de Deus, e não de você mesmo. Somente ele é que
pode concedê-la. É algo muito acima do poder não assistido da natureza; pois,
ainda que possa haver grandes realizações, e também grandes sofrimentos,
contudo, sem amor sincero são todos vãos. Tais ações e sofrimentos podem, de
fato, ser requeridas de nós, como seguidores de Cristo, e como forma de dever;
mas não devemos descansar nelas, ou sentir que tenham qualquer mérito ou
dignidade em si mesmas. Na melhor das hipóteses, são apenas a evidência externa
e o fluxo de um espírito reto no coração.
Seja exortado, então, a acalentar o amor sincero, ou a
caridade cristã, como a coisa maior no coração. É o que você deve ter, e sem
ela não há nada que sirva de auxílio a sua situação. Sem ela, tudo tenderá, de
alguma forma, apenas para aprofundar sua condenação, e para tão-somente
afundá-lo nas maiores profundidades do mundo do desespero!
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