domingo, 17 de maio de 2015

A CARIDADE, OU AMOR, É A SOMA DE TODA VIRTUDE



A CARIDADE, OU AMOR, É A SOMA DE TODA VIRTUDE
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos e não tivesse caridade, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse caridade, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria.
- 1 Coríntios 13:1-3

N
essas palavras observamos:
Primeiro, algo que é mencionado como de especial importância, e como peculiarmente essencial aos cristãos, a que o apóstolo denomina caridade. E vemos que esta caridade é abundantemente insistida no Novo Testamento, por Cristo e seus apóstolos, mais insistida, de fato, que qualquer outra virtude.
Contudo, a palavra “caridade”, como é usada no Novo Testamento, possui significado mais amplo do que o seu uso na linguagem comum. O que as pessoas geralmente entendem por “caridade”, nas conversas ordinárias, é aquela disposição para esperar e pensar o melhor dos outros, e não distorcer suas palavras e atos. Às vezes, é usada para descrever a disposição em se doar aos pobres. Tais coisas, entretanto, são apenas certos ramos específicos, ou frutos, dessa grande virtude que é tão enfatizada por todo o Novo Testamento. A palavra, no seu sentido próprio, significa amor, isto é, aquela disposição ou afeição pela qual alguém é querido a outro. A palavra original, ágape, traduzida aqui por “caridade”, poderia ter sido melhor traduzida  como “amor”, pois é essa a correspondente adequada no inglês.
Assim, por caridade, no Novo Testamento, quer-se dizer a mesma coisa que amor cristão. Ainda que seja mais frequente seu uso para designar o amor aos homens, é não apenas isso, mas também amor a Deus. Desse modo é manifesto seu uso pelo apóstolo nesta epístola aos coríntios, como ele próprio se explica em 1 Co 8:1: “A ciência incha, mas o amor [caridade, na versão do autor] edifica.
Nessa passagem, a comparação é entre o conhecimento e a caridade, e a preferência é dada à ultima, uma vez que o conhecimento envaidece, mas a caridade edifica. Então, nos dois versículos seguintes, é mais especificamente explicado como o conhecimento geralmente envaidece, e por que a caridade edifica. Logo, o que no primeiro versículo é chamado caridade, no terceiro é chamado amor a Deus, pois é evidente que se trata da mesma coisa, nos dois lugares.
Sem dúvida, neste capítulo treze, o apóstolo tem em mente o mesmo assunto do oitavo, pois aqui novamente compara as mesmas duas coisas lá tratadas, isto é, o conhecimento e a caridade. “Ainda que...conhecesse todos os mistérios e toda a ciência...e não tivesse caridade, nada seria.E, novamente: A caridade nunca falha...havendo ciência [isto é, conhecimento], desaparecerá. Logo, sem dúvida, por caridade, aqui, devemos entender o amor cristão em sua plena extensão, quer exercido em relação a Deus, quer a nossos semelhantes.
E fala-se aqui dessa caridade como aquilo que de uma maneira especial é a coisa maior e essencial, o que se mostra mais plenamente quando observamos:
Em segundo lugar, o que é mencionado como sendo vão sem ela, isto é, as coisas mais excelentes que poderiam pertencer aos homens naturais: os mais excelentes privilégios e as mais excelentes realizações.
Primeiro, há os mais excelentes privilégios, tais como o falar em línguas, o dom de profecias, o entendimento de todos os mistérios, a fé que remove montanhas etc.
Segundo, as mais excelentes realizações, tais como o distribuir todos os bens entre os pobres, entregar o corpo para ser queimado etc. Coisas maiores que essas, homem natural [o homem não convertido] algum jamais teve ou fez, e esses são tipos de coisas nas quais os homens são grandemente inclinados a confiar. Contudo, o apóstolo declara que se as tivéssemos todas, e não tivéssemos a caridade, nada seríamos. Portanto, a doutrina ensinada é:
TODA VIRTUDE QUE É SALVÍFICA, E QUE DISTINGUE OS CRISTÃOS VERDADEIROS DOS DEMAIS, ESTÁ RESUMIDA NO AMOR CRISTÃO.
Isso se mostra pelas palavras do texto, pois são mencionadas tantas outras coisas que os homens naturais podem ter, e coisas essas que são dos mais altos tipos alcançáveis por eles, tanto privilégios quanto realizações, e, ainda assim, é dito que elas de nada valem sem a caridade. Se, ao contrário, essas coisas fossem salvíficas, teriam alguma serventia sem ela.
Pelo fato de o apóstolo mencionar tantas e tão altas coisas, e dizer que de nada adiantam sem a caridade, podemos corretamente concluir que nada existe que tenha algum valor sem ela. Tenha um homem o que tiver, e faça o que fizer, isso nada significa sem a caridade, o que implica certamente que ela é a coisa maior, e que tudo o que não contenha ou implique de algum modo em si a caridade, nada é. Implica também que ela é a vida e alma de toda a religião, sem a qual todas as coisas que vestem o nome de virtudes são vazias e vãs.
Ao falar desta doutrina, primeiro notarei a natureza deste amor divino, e depois demonstrarei a verdade da doutrina relacionada a ela.
I. Falarei da natureza de um amor verdadeiramente cristão. E aqui observo:
1. Que todo amor verdadeiramente cristão é um e o mesmo em seu princípio.
Ele pode variar em suas formas e objetos, e pode ser exercido tanto em relação a Deus quanto aos homens, mas é o mesmo princípio no coração que é o fundamento de cada exercício de um amor verdadeiramente cristão, qualquer que seja seu objeto.
Não acontece com o amor santo no coração dos cristãos como se dá com o amor de outros homens. O amor deles, direcionado a diferentes objetos, pode derivar de diferentes princípios e motivos, e com diferentes objetivos; mas isso não ocorre com um amor verdadeiramente cristão. Ele é um quanto ao seu princípio, qualquer que seja o objeto em relação ao qual é exercido. Provém da mesma fonte ou princípio no coração, embora possa fluir em canais diferentes e direções diversas. Portanto, pode-se defini-lo com justeza com o único nome de caridade, como no texto.  Que o amor cristão é um, quaisquer que sejam os objetos em direção aos quais flui, é evidente pelo seguinte:
Primeiro, ele procede do mesmo Espírito influenciando o coração.
É pela inspiração do mesmo Espírito que surge o verdadeiro amor cristão, tanto a Deus quanto aos homens. O Espírito de Deus é um Espírito de amor, e quando Ele entra na alma, o amor vem consigo. Deus é amor, e o que tem Deus habitando em si, pelo seu Espírito, terá também o amor habitando em si. A natureza do Espírito Santo é amor, e é comunicando a si mesmo, em sua própria natureza, aos santos, que o coração deles é preenchido com a caridade divina. Assim, descobrimos que os santos são participantes da natureza divina, e o amor cristão é chamado de “amor do Espírito” (Rm 15:30), e “amor no Espírito” (Cl 1:8); e as próprias entranhas do amor e da misericórdia parecem significar a mesma coisa que a comunhão do Espírito (Fl 2:1). Também é esse Espírito que infunde amor a Deus (Rm 5:5); e é pela habitação dele que a alma permanece no amor a Deus e ao homem (1 Jo 3:23, 24; 4:12, 13).
Segundo, o amor cristão, tanto a Deus quanto ao homem, é operado no coração pela mesma obra do Espírito.
Não há duas obras do Espírito de Deus, uma para infundir um espírito de amor a Ele, e outra para infundir um espírito de amor aos homens, mas, ao produzir um, o Espírito produz o outro também. Na obra da conversão, o Santo Espírito renova o coração dando-lhe um caráter divino (Ef 4:23), e é um e o mesmo caráter divino, que é assim trabalhado no coração, que flui em amor tanto a Deus quanto ao homem.
Terceiro, quando Deus e o homem são amados com um amor verdadeiramente cristão, ambos são amados pelas mesmas razões.
Quando Deus é amado corretamente, é amado por sua excelência, e pela beleza de sua natureza, especialmente a santidade dela; e é pelo mesmo motivo que os santos são amados, por causa da santidade. E todas as coisas que são amadas com um amor verdadeiramente santo, são amadas pelo mesmo respeito a Deus.
O amor a Deus é o fundamento do amor gracioso aos homens, e os homens são amados, quer por que sejam em algum aspecto semelhantes a Deus, por possuírem sua natureza e imagem espiritual, quer devido à relação que têm com Ele, como seus filhos ou criaturas - como aqueles que são abençoados por Ele, ou a quem sua misericórdia é ofertada, ou de algum outro modo relacionado a Ele.
Apenas observo que, embora o amor cristão seja um em seu princípio, é contudo distinta e variadamente denominado de dois modos, com respeito a seus objetos, e aos modos como é exercitado, como, por exemplo, seus graus etc. Prossigo agora,
II. Para mostrar a verdade da doutrina de que toda virtude salvífica, ou característica, dos cristãos verdadeiros, está resumida no amor cristão.
1. Podemos argumentar a partir do que a razão ensina sobre a natureza do amor. E se nós considerarmos devidamente sua natureza, duas coisas aparecerão:
Primeiro, que o amor disporá a todos os atos apropriados de respeito tanto por Deus quanto pelo homem.
Isso é evidente, pois um verdadeiro respeito, seja a Deus, seja ao homem, consiste no amor. Se um homem ama sinceramente a Deus, isso o disporá a render-lhe todo o respeito apropriado, e os homens não necessitam de outra incentivo para mostrar uns aos outros todo o respeito devido além do amor.
O amor a Deus irá dispor um homem a honrá-lo, adorá-lo, prestar-lhe culto, e reconhecer de coração sua grandeza, glória e domínio. E assim disporá a todos os atos de obediência a Deus, pois o servo que ama seu senhor, e o súdito que ama seu soberano, estará disposto à devida sujeição e obediência.
O amor disporá o cristão a portar-se em relação a Deus como um filho em relação ao pai: em meio a dificuldades, dirigir-se a Ele por auxílio, e por nele toda sua confiança, como é natural a nós, em caso de necessidade e aflição, ir a alguém a quem amamos em busca de compaixão e auxílio. Conduzir-nos-á também a dar crédito à sua Palavra, e em Deus por a confiança, pois não somos capazes de suspeitar da credibilidade de quem temos inteira amizade. Dispor-nos-á a dar a Deus louvores pelas misericórdias que dele recebemos, do mesmo modo como estamos dispostos a ser gratos por qualquer bondade recebida da parte de nossos semelhantes que amamos.
O amor, novamente, disporá nossos corações à submissão à vontade de Deus, pois estamos mais dispostos que se cumpra a vontade dos que amamos do que a de outros. Naturalmente desejamos que aqueles que amamos sejam agradados e que nós sejamos agradáveis a eles. A verdadeira afeição e amor a Deus disporá o coração a reconhecer o direito que Ele tem de governar, e que é digno de o fazer, e assim disporá nosso coração à submissão.
O amor a Deus dispor-nos-á a andar humildemente com ele, pois o que ama a Deus está disposto a reconhecer a vasta distância entre Deus e si. Será agradável a tal homem exaltar Deus, e entronizá-lo acima de tudo, e se rebaixar diante dele. Um cristão verdadeiro se deleita em ter Deus exaltado enquanto ele próprio é humilhado, porque O ama. Está disposto a reconhecer que Deus é digno disso, e é com deleite que se lança ao pó perante o Altíssimo, devido a seu amor sincero por ele.
Ademais, uma consideração devida da natureza do amor mostrará que ele dispõe os homens a todos os deveres relacionados ao próximo. Se os homens tiverem amor sincero por seu próximo, isso os disporá a todos os atos de justiça para com eles – pois o amor verdadeiro e a amizade sempre nos dispõem a dar o que é devido a quem amamos – e nunca falhar com eles: “O amor não faz mal ao próximo.” (Rm 13:10) E o mesmo amor disporá a falar a verdade ao próximo, e tenderá a prevenir toda mentira, fraude e engano. Os homens não estão dispostos a fraudar e a trair aqueles a quem amam, pois tratar os homens dessa maneira é tratá-los como inimigos; mas o amor destrói a inimizade. Por isso, o apóstolo faz uso da unidade que deve haver entre os cristãos como um argumento para induzi-los à verdade entre os si (Ef 4:25).
O amor disporá a andar humildemente entre os homens; pois um amor real e verdadeiro nos inclinará a ter pensamentos elevados acerca dos outros, e pensar deles melhor que de nós mesmos. Disporá os homens a honrarem uns aos outros, pois todos estão inclinados a pensar bem daqueles que amam, e dar-lhes honra. Logo, pelo amor se cumpre aqueles preceitos: “Honrai a todos.” (1 Pe 2.17) E: “Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo.” (Fl 2:3)
 O amor nos disporá ao contentamento com a posição na qual Deus nos colocou, sem cobiçar coisa alguma que pertença ao próximo, ou invejá-los por causa de qualquer bem que possuam. Disporá os homens à mansidão em sua postura para com o próximo, e a não tratá-los com paixão ou violência, ou ardor de espírito, mas com moderação e calma, em bondade. Avaliará e restringirá coisas como um espírito amargo; pois o amor não contém em si a amargura, mas é uma disposição gentil e doce, e uma afeição da alma. Prevenirá tumultos e discussões, e disporá os homens à paz, e a perdoar a injúria recebida de outros; como é dito em Pv 10:12: “O ódio excita contendas, mas o amor cobre todas as transgressões.
O amor disporá os homens a todos os atos de misericórdia em relação ao próximo, quando estiverem em qualquer aflição ou calamidade, pois temos a propensão natural de nos compadecermos dos que amamos, quando estão aflitos. Disporá os homens a dar aos pobres, a suportar a carga uns dos outros, e a chorar com os que choram, bem como a alegrar-se com os que se alegram.
O amor disporá os homens aos deveres que têm uns para com os outros, nas suas diversas posições e relações. Disporá um povo a todos os deveres que tem para com as autoridades, e a dar a elas toda a honra e sujeição devidas. E disporá as autoridades a governarem o povo sobre o qual estão estabelecidas justa, séria e fielmente, buscando seu bem, e não qualquer benefício próprio.
Também disporá um povo a todo dever apropriado para com os ministros [da Palavra], a ouvir seus conselhos e instruções, e submeter-se a eles na casa de Deus, e a apoiá-los e a ser simpáticos e a orar por eles, pois são como os guardas de sua alma. E disporá os ministros a fiel e incessantemente buscarem o bem das almas de seu povo, vigiando por eles como quem deve prestar contas.
O amor disporá à devida conduta entre superiores e inferiores: disporá os filhos a honrarem seus pais, e os servos a obedecerem seus senhores, não com fingimento, mas com sinceridade de coração, e disporá os senhores ao exercício da gentileza e bondade para com seus servos.
Assim o amor disporá a todos os deveres, tanto para com Deus quanto para com os homens. E, se assim disporá a todos os deveres, segue-se que é a raiz e fonte e, por assim dizer, um sumário de todas as virtudes. É um princípio que, se for implantado no coração, sozinho, é suficiente para produzir toda boa prática; e toda reta disposição para com Deus e o homem está nele resumida, e dele procede, como um fruto de uma árvore, ou um regato de uma fonte.
Segundo, a razão nos ensina que quaisquer realizações ou aparentes virtudes que existam sem o amor, são fingidas e hipócritas.
Se não houver amor no que os homens fazem, então não há respeito verdadeiro para com Deus em sua conduta; e se assim for, é certo que não há sinceridade também. A religião nada é sem o devido respeito a Deus. A própria noção de religião entre os homens é a de exercício e expressão por parte da criatura de respeito para com o Criador. Mas, se não há respeito e amor verdadeiros, então tudo o que é chamado religião nada mais é do que uma aparente exibição, e nela não há verdadeira religião, mas é tudo falso e vão.
Logo, se a fé de um homem for de tipo tal que não haja verdadeiro respeito a Deus nela, a razão ensina que deve ser vã, pois se não há amor a Deus também não pode haver real respeito a ele. Daí, conclui-se que o amor sempre está contido na fé verdadeira e viva, e é a sua verdadeira e própria vida e alma, sem a qual a alma está morta, à semelhança de um corpo sem alma. E é isso que distingue especialmente uma fé viva das outras, porém falaremos mais disso daqui para frente.
Sem amor a Deus não pode haver verdadeira honra a ele. Um homem nunca presta honra de coração a alguém a quem não ama, logo, toda honra aparente ou culto que é prestado sem amor nada mais é do que hipocrisia. E assim a razão ensina que não há sinceridade na obediência que é realizada sem amor, pois, se não houver amor, nada pode ser feito de forma espontânea e livre, mas sempre será forçado. Logo, sem amor, não pode haver submissão de coração à vontade de Deus, e não pode haver confiança verdadeira e cordial nele. Aquele que não ama a Deus, não confia nele: esse jamais, com verdadeira aquiescência de alma, lançar-se-á nas mãos de Deus, ou nos braços de sua misericórdia.
Portanto, ainda que haja boa postura nos homens em relação ao próximo, contudo, a razão ensina que tudo é inaceitável e vão, se ao mesmo tempo não houver no coração real respeito para com ele, e se a conduta exterior não for motivada pelo amor interior. E dessas duas coisas tomadas juntas, isto é, que esse amor é de tal natureza que produzirá todas as virtudes e disporá a todos os deveres para com Deus e os homens, e que sem isto não pode haver virtude sincera e nenhum dever pode ser propriamente realizado, a verdade da doutrina é provada – que toda virtude e graça cristãs, verdadeiras e salvíficas, podem ser resumidas no amor.
2. As Escrituras ensinam que o amor é a soma de tudo o que está contido na lei de Deus, e de todos os deveres requeridos em sua Palavra. Esse é o ensino da Escritura sobre a lei em geral, e sobre cada tábua da lei em particular.
Primeiro, as Escrituras ensinam isto quanto à lei e à Palavra de Deus em geral.
Por Lei, nas Escrituras, às vezes se denomina o todo da Palavra escrita de Deus, como em Jo 10:34: “Não está escrito na vossa lei: Eu disse: sois deuses?”
Outras vezes, por lei, se denominam os cinco livros de Moisés, como em Atos 24:14, onde se distingue entre a “lei” e os “profetas”. Ainda outras vezes, por lei, se tem em vista os dez mandamentos, como contendo a soma de todo dever da humanidade, e de tudo que é exigido como de universal e perpétua obrigação.
Mas quer tomemos a lei apenas no sentido dos dez mandamentos, quer incluindo o todo da Palavra escrita de Deus, as Escrituras nos ensinam que a soma do que nela é requerido é o amor. Assim, quando pela lei se tem em vista os dez mandamentos, é dito em Rm 13:8: “Quem ama aos outros cumpriu a lei.”
Portanto, vários dos mandamentos são repetidos, e é adicionado, no decimo versículo que o “amor” (que nos leva à obediência de todos eles) é “o cumprimento da lei.” Ora, a menos que o amor seja a soma do que a lei requer, esta não poderia ser cumprida plenamente no amor, pois uma lei é cumprida apenas pela obediência à soma ou ao todo do que ela contém ou ordena. Então, o mesmo apóstolo declara novamente: “Ora, o fim do mandamento é a caridade de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não fingida.” (1 Tm 1:5)
Mas, se tomarmos a lei em um sentido ainda mais extenso, como o todo da Palavra escrita de Deus, as Escrituras ainda nos ensinam que o amor é a soma do que nela é requerido. Em Mt 22:40, Cristo ensina que nestes dois preceitos de amar a Deus com todo o coração, e ao próximo como a nós mesmos, dependem toda a lei e os profetas, isto é, toda a Palavra escrita de Deus; pois o que então era chamado de lei e profetas era o todo da Palavra escrita de Deus então em vigor.
Segundo, as Escrituras ensinam o mesmo de cada tábua da lei em particular.
O mandamento: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração...” é declarado por Cristo (Mt 22.37,38) como sendo o cumprimento da primeira tábua da lei, ou o primeiro grande mandamento. No próximo versículo, amar ao nosso próximo como a nós mesmos é declarado como sendo o cumprimento da segunda tábua, como também aparece em Rm 13.9, onde os preceitos da segunda tábua da lei são particularmente especificados. E é adicionado: “E, se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.” Também em Gl 5.14: “Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” E o mesmo parece ser declarado em Tg 2.8: “Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, bem fazeis.”
Logo, o amor parece ser a soma de toda virtude e dever que Deus requer de nós, e portanto deve ser, sem dúvidas, a coisa mais essencial – a soma de toda virtude que seja essencial e distinta no verdadeiro cristianismo. Aquilo que é a soma de todos os deveres, também deve ser a soma de todas as virtudes verdadeiras.
3. A verdade da doutrina, como mostrada pelas Escrituras, evidencia-se pelo que o apóstolo nos ensina em Gálatas 5.6, de que “a fé opera pelo amor”.
 Uma fé verdadeiramente cristã é aquela que produz boas obras; mas todas as boas obras que ela produz são pelo amor. Disso, duas coisas são evidentes para o presente propósito:
Primeiro, que o amor verdadeiro é um ingrediente em uma fé verdadeira e viva, e é o que é mais essencial e distinto nela.
O amor não é ingrediente numa fé meramente especulativa, mas é a vida e a alma de uma fé prática. Uma fé verdadeiramente prática ou salvífica é tanto luz quanto calor, ou melhor, luz e amor, enquanto uma fé meramente especulativa é apenas luz sem calor, nela falta calor espiritual ou amor divino; logo, para nada serve e é vã.
Uma fé especulativa consiste apenas no assentimento do entendimento, mas na fé salvífica também há o consentimento do coração. A fé que é apenas do primeiro tipo não é melhor que a dos demônios, pois eles também possuem fé, até onde seja possível tê-la sem amor: eles creem e tremem. Agora, o consentimento verdadeiramente espiritual do coração não pode ser diferenciado do amor do coração. Aquele cujo coração consente a Cristo como Salvador, tem amor verdadeiro por ele como tal. Pois o fato do coração sinceramente consentir no caminho da salvação por Cristo, não pode ser diferenciado de amar esse caminho da salvação, e descansar nele. Há um ato de escolha ou eleição na verdadeira fé salvífica, no qual a alma escolhe Cristo para seu Salvador e porção, e o aceita e abraça como tal. Porém, como foi observado antes, uma eleição ou escolha pela qual ela, desse modo, escolhe Deus e Cristo é um ato de amor – o amor de uma alma abraçando-o como seu mais querido amigo e porção.
A fé é um dever que Deus requer de todos. Somos ordenados a crer e a incredulidade é um pecado proibido por Deus. A fé é dever requerido na primeira tábua da lei, e no primeiro mandamento dessa tábua. Portanto, conclui-se que está compreendida no grande mandamento: “Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração...” Logo, segue-se que o amor é a coisa mais essencial na fé verdadeira.
Que o amor é a própria vida e espírito de uma fé verdadeira, é especialmente evidente pela comparação desta declaração do apóstolo de que a “fé opera pelo amor”, e o último versículo do segundo capítulo da carta de Tiago (Tg 2.26), que declara que: “Assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta.”
A natureza funcional e ativa de algo é a sua vida; e o que nos faz chamar algo de vivo é que nele observamos uma natureza ativa. Esta natureza funcional e ativa no homem é o espírito que está dentro dele. E assim como seu corpo sem o espírito está morto, também a fé sem obras está morta. E se quisermos saber qual é o principio ativo da fé verdadeira o apostolo nos responde em Gl 5.6: “A fé que opera pelo amor.”
Portanto é o amor que é o espirito ativo e funcional em toda fé verdadeira. É a sua própria alma, sem a qual está morta, como, por outro modo, ele afirma ao salientar no texto que a fé, sem a caridade ou amor, nada é, embora seja grande o suficiente para remover montanhas. E quando diz, no sétimo verso do contexto, que o amor “tudo crê, tudo espera,” provavelmente se refere às grandes virtudes de crer e esperar na verdade e graça de Deus, as quais compara o amor em outras partes do capítulo, em particular no ultimo versículo: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade.”
Pois, no sétimo verso, dá preferência ao amor, antes das outras virtudes da fé e da esperança, porque aquele inclui estas; pois diz “a caridade tudo crê, tudo espera”, de tal modo que esse parece ser o seu sentido, e não meramente, como é vulgarmente entendido, que o amor tudo crê e espera com relação a nosso próximo.
Que uma fé justificadora, como uma marca muito distinta do cristianismo, está compreendida no grande mandamento de amar a Deus, também aparece, muito claramente, do que Cristo diz aos judeus (Jo 5. 40-43).
Segundo, é ainda mais manifesto a partir desta declaração do apóstolo de que “a fé opera pelo amor”, que todos os exercícios cristãos do coração, e as obras da vida, procedem do amor.
Pois somos abundantemente ensinados, no Novo Testamento que toda santidade cristã começa com a fé em Jesus Cristo. Toda obediência cristã, nas Escrituras, é chamada de obediência por fé, assim como em Rm 16:26, o evangelho diz-se que o evangelho “se manifestou agora...a todas as nações para obediência da fé” A obediência aqui descrita é sem dúvida a mesma daquela referida no oitavo versículo do capítulo anterior, onde Paulo fala de fazer “os gentios obedientes por palavra e por obras.” Em Gl 2.20, nos diz: “A vida que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim.”
Com frequência, nos é dito que os cristãos, até onde são cristãos, “vivem pela fé”, o que é equivalente a dizer que todos os exercícios graciosos e santos, e as virtudes da vida espiritual, são pela fé. Mas como a fé opera essas coisas? Ora! Nessa passagem de Gálatas é expressamente dito que ela opera em tudo pelo amor. De onde se conclui a verdade da doutrina, isto é, que tudo que seja salvífico e distinto no cristianismo de fato consiste radicalmente, e está resumidamente compreendido no amor.
Na aplicação desse assunto, podemos usá-lo como forma de autoexame, instrução e exortação.
1. Em vista dele, examinemos a nós mesmos, e vejamos se temos o espírito que nos é prescrito. Do amor a Deus brota o amor ao homem, como diz o apóstolo: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido.” (1 João 5:1) Temos esse amor por todos os que são filhos de Deus?
Esse amor também leva a todos que o possuem a regozijar-se em Deus, a adorá-lo e magnificá-lo. Disso é feito o céu (Ap 15.2-4): “E vi um como mar de vidro misturado com fogo e também os que saíram vitoriosos da besta, e da sua imagem, e do seu sinal, e do número do seu nome, que estavam junto ao mar de vidro e tinham as harpas de Deus. E cantavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor, Deus Todo-poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos santos! Quem te não temerá, ó Senhor, e não magnificará o teu nome? Porque só tu és santo; por isso, todas as nações virão e se prostrarão diante de ti, porque os teus juízos são manifestos.”
Nós nos deliciamos desse modo em Deus, e nos regozijamos em seu culto e em magnificar o seu santo nome? Esse amor também leva os que o possuem a sinceramente desejar, e ardentemente se esforçar para fazer o bem ao próximo (1 Jo 3.16): “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos. [ARA]” É este espírito, que habitou em Jesus Cristo, o espírito que reina em nossos corações, e é visto em nossa vida diária?
O assunto também pode ser útil:
2. Como instrução:
Primeiro, essa doutrina nos mostra qual é o reto espírito cristão. Quando os discípulos, em seu caminho para Jerusalém, desejaram que Cristo fizesse descer fogo do céu para consumir os samaritanos que não o receberam, ele lhes disse com repreensão (Lc 9.55): “Vós não sabeis de que espírito sois.” Devemos entender com isso, não que eles não conhecessem seus corações, mas que não conheciam e sentiam verdadeiramente que tipo de espírito era apropriado e adequado ao caráter e espírito, como discípulos professos dele, e adequado a esta dispensação evangélica que tinha vindo estabelecer, e sob a qual agora viviam.
De fato, poderia ser, e sem dúvida era verdade, que em muitos aspectos eles não conheciam o próprio coração. Mas a que Cristo se refere aqui não é à falta de autoconhecimento em geral, mas ao espírito particular que tinham manifestado ao desejar que ele fizesse descer fogo do céu; um desejo que mostrava não tanto o que eles não sabiam sobre como eram os próprios corações ou disposições, mas que pareciam não saber que tipo de espírito e temperamento era apropriado à dispensação cristã que dali por diante devia ser estabelecida, e ao caráter cristão, do qual deviam ser exemplos. Eles mostraram sua ignorância da verdadeira natureza do reino de Cristo; que este devia ser um reino de amor e paz, e não sabiam que um espírito vingativo não era apropriado a eles, como discípulos. Por essa razão, Cristo os repreende.
E, sem dúvida, há muitos hoje que devem ser enormemente repreendidos por esse motivo, pois embora estejam há tanto tempo na escola de Cristo, e sob os ensinos do evangelho, ainda permanecem sob um grande equívoco quanto ao tipo de espírito que deve ser um espírito verdadeiramente cristão, e que é apropriado aos seguidores de Cristo e à dispensação sob a qual vivem.
Mas, se atendermos ao texto e à sua doutrina, eles nos ensinarão que espírito é esse, ou seja, que em sua própria essência e aroma é o espírito do amor divino e cristão. Este pode, por razão de eminência, ser chamado o espírito cristão; pois é mais insistido no Novo Testamento que qualquer outra coisa que diga respeito quer a nosso dever ou ao nosso estado moral. As palavras de Cristo pelas quais ensinou aos homens o dever deles, e deu conselhos e mandamentos a seus discípulos e a outros, foram em grande parte gastas nos preceitos do amor, e assim como as palavras que procediam de sua boca eram tão cheias dessa doce e divina virtude, ele também mui manifestamente a recomenda a nós.
Após sua ascensão, os apóstolos estavam cheios do mesmo espírito em suas epístolas, abundantemente recomendando o amor, a paz, a gentileza, a bondade, entranhadas compaixão e benignidade, nos direcionando a tais coisas para expressar nosso amor por Deus e Cristo, bem como por nossos semelhantes e, em especial, a todos que são seus seguidores.
Os maiores motivos que Deus exibe no evangelho, acima de qualquer coisa, são para nos induzir a este espírito, um espírito de amor. A obra da redenção que o evangelho apresenta, acima de tudo, fornece motivação para o amor; pois essa obra foi a mais gloriosa e maravilhosa exibição de amor jamais vista ou ouvida.
O amor é a coisa principal com que o evangelho detém-se ao falar de Deus e de Cristo. Ele traz à luz o amor eternamente existente entre o Pai e o Filho, e declara como esse mesmo amor foi manifestado em muitas coisas; como esse Cristo é o Filho bem-amado de Deus, em quem ele se compraz; como ele o amou de tal maneira que o ressuscitou para o trono do reino mediatorial, o apontou para ser o juiz do mundo, e ordenou que toda a humanidade permanecesse diante dele em julgamento.
No evangelho também é revelado o amor que Cristo tem pelo Pai, e os frutos maravilhosos desse amor, em particular por ter feito essas grandiosas coisas, e sofrido tão grandes coisas em obediência à vontade do Pai, e pela honra de sua justiça, lei e autoridade, como o grande governador moral. Lá está revelado como o Pai e o Filho são um em amor, para que fôssemos induzidos, em espírito semelhante, a ser um com eles, e uns com os outros, conforme a oração de Cristo em João 17:21-23: “A fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim.”
O evangelho também nos declara que o amor de Deus foi desde a eternidade, e nos lembra que ele amou os que são redimidos por Cristo antes da fundação do mundo; e que lhes deu o Filho; e que o Filho os amou como sua propriedade. Revela também o maravilhoso amor tanto do Pai quanto do Filho aos santos, agora em glória – que Cristo não apenas os amou enquanto estavam no mundo, mas que os amou até o fim. E diz-se que todo esse amor é concedido a nós enquanto ainda éramos errantes [wanderers], réprobos, indignos, culpados e até mesmo inimigos. Isto é amor, tal qual jamais foi conhecido ou concebido em lugar algum:: “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos seus amigos.” (João 15.13) “Dificilmente, alguém morreria por um justo...Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores...quando inimigos.” (Romanos 5.7-10)
Deus e Cristo aparecem na revelação do evangelho como vestidos com amor; como assentados, por assim dizer, em um trono de misericórdia e graça, um assento de amor, rodeados com os doces raios de amor. O amor é a luz e glória que circundam o trono sobre o qual Deus está assentado. Parece que se tem isso em mente na visão que o apóstolo João, este amável e amado discípulo, teve de Deus na ilha de Patmos: “E o arco celeste estava ao redor do trono e era semelhante à esmeralda.” (Ap 4.3) ou seja, em redor do trono sobre o qual Deus se assentava. De modo que Deus apareceu a ele, enquanto se assentava no trono, como se rodeado com um círculo de luz muito doce e agradável, como as belas cores do arco-íris, e como esmeralda, que é uma pedra preciosa de cores muito agradáveis e belas – representando assim que a luz e glória com as quais Deus aparece cercado no evangelho, é especialmente a glória de seu amor e graça pactual, pois o arco-íris foi dado a Noé como um sinal de ambos.
Portanto, é evidente que este espírito, este mesmo espírito de amor, é o Espírito que a revelação do evangelho especialmente apresenta motivação e induzimento; e este é especial e eminentemente o espírito cristão – o correto espírito do evangelho.
Segundo. Se assim for de fato, que tudo o que é salvífico e distinto em um verdadeiro cristão está sumariamente compreendido no amor, então os professantes do cristianismo podem ser ensinados, quanto às suas experiências, se são experiências cristãs ou não.
Se forem, então o amor é a soma e substância delas. Se as pessoas tiverem a verdadeira luz do céu adentrada em suas almas, não é uma luz sem calor. O conhecimento divino e o amor divino andam juntos. Uma contemplação espiritual das coisas divinas, sempre incita amor na alma, e arrasta o coração, em amor, a cada objeto próprio.
Verdadeiras descobertas do caráter divino nos dispõem a amar a Deus como o bem supremo; elas unem o coração em amor a Cristo; inclinam a alma para transbordar em amor ao povo de Deus, e a toda a humanidade. Quando as pessoas fazem uma verdadeira descoberta da excelência e suficiência de Cristo, esse é o efeito. Quando experimentam uma crença certa da verdade do evangelho, tal crença é acompanhada pelo amor. Elas amam aquele que creem ser o Cristo, o Filho do Deus vivo. Quando a verdade das gloriosas doutrinas e promessas do evangelho é vista, essas doutrinas e promessas são como muitas cordas que agarram o coração, e o induzem ao amor a Deus e a Cristo. Quando as pessoas experimentam uma verdadeira confiança e segurança em Cristo, confiam nele com amor, e assim o fazem com deleite e doce aquiescência de alma. A esposa sentou-se sob a sombra de Cristo com grande deleite, e descansou docemente sob sua proteção, porque o amava (Ct 2:2). Quando as pessoas experimentam verdadeiro conforto e alegria espiritual, sua alegria é a alegria da fé e do amor. Não se regozijam em si mesmas, mas é Deus que é sua excedente alegria.
Terceiro, esta doutrina mostra a amabilidade de um espírito cristão. Um espírito de amor é um espírito amável. É o espírito de Jesus Cristo; é o espírito do céu.
Quarto, esta doutrina mostra a delícia da vida cristã. Uma vida de amor é uma vida agradável. Tanto a razão quanto as Escrituras nos ensinam que “feliz é o homem que acha sabedoria,” e que “seus caminhos são caminhos de delícias, e todas as suas veredas, paz.” (Pv 3:13,17)
Quinto, daí podemos aprender a razão pela qual a contenda tende tanto para a ruína da religião. As Escrituras nos dizem que ela tem esta tendência: “Porque, onde há inveja e espírito faccioso, aí há perturbação e toda obra perversa.” (Tg 3.16) E isso também descobrimos por experiência. Quando a contenda chega a um lugar, parece impedir todo bem. E se, antes, a religião tiver florescido, logo parece esfriar e enfraquecer. E, à luz de nossa doutrina, podemos ver claramente a razão disso tudo. É porque a contenda é diretamente oposta àquilo que é o próprio sumário de tudo o que é essencial e distinto no verdadeiro cristianismo, isto é, um espírito de amor e paz. Não é de maravilhar-se, portanto, que o cristianismo não possa florescer em tempo de brigas e contendas entre seus professantes. Não é admirar que a religião e a contenda não possam conviver.
Sexto, daí, então, que vigilância e guarda devem os cristãos manter contra a inveja e malícia, e todo tipo de amargura de espírito em relação ao próximo.
Pois essas coisas são o inverso da verdadeira essência do cristianismo. E convém aos cristãos que não querem, por sua prática, diretamente contradizer sua profissão [de fé], que tenham cuidado de si mesmos nesta matéria. Devem suprimir os primeiros princípios de rancor, amargura e inveja; vigiar estritamente contra todas as exibições de tal espírito; combater e lutar ao máximo contra toda índole que a isso conduza; e evitar, tanto quanto possível, todas as tentações que a ela conduzam.
Um cristão deve, a todo tempo, manter uma forte guarda contra tudo que tenda a arruinar, corromper ou minar um espírito de amor. Aquilo que impede o amor aos homens, impedirá o exercício de amor a Deus; pois, como antes foi observado, o princípio de um amor verdadeiramente cristão é um. Se o amor for o sumário do cristianismo, certamente aquelas coisas que o arruínam, são sobremodo impróprias aos cristãos. Um cristão invejoso e malicioso, um cristão de coração frio e endurecido, é o maior absurdo e contradição. É como se alguém pudesse falar de brilhantes trevas, ou de verdade falsa!
Sétimo, daí não é de admirar que o cristianismo tão estranhamente requeira que amemos nossos inimigos, até mesmo os piores deles (como em Mt 5:44); pois o amor é a própria índole e espírito de um cristão: é a suma do cristianismo. E se considerarmos os incentivos a amar nossos inimigos que são colocados diante de nós naquilo que o evangelho revela sobre o amor de Deus e de Cristo pelos seus inimigos, não podemos nos surpreender que sejamos requeridos a amar nossos inimigos, bendizê-los, fazer-lhes o bem e orar por eles, “Para que sejais filhos do Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva desça sobre justos e injustos.” (Mt 5.45)
3. Nosso assunto nos exorta a buscar um espírito de amor; a nele crescer continuamente; e a superabundar em obras de amor. Se o amor é algo tão grande no cristianismo, tão essencial e distinto, sim, a própria suma de toda virtude cristã, então, certamente, aqueles que se professam cristãos devem viver em amor, e abundar nas obras de amor, pois nenhuma obra é tão apropriada como essa. Se você se chama cristão, onde estão suas obras de amor? Você tem abundado, e abunda nelas? Se esse princípio divino e santo está em você, reinando sobre você, não aparecerá em sua vida em obras de amor?
Considere que obras de amor você tem feito? Você ama a Deus? O que tem feito por ele, para a sua glória, para o avanço de seu Reino no mundo? O quanto tem negado a si mesmo para promover o interesse do Redentor entre os homens?
Você ama aos seus semelhantes? O que tem feito por eles? Considere suas faltas anteriores nesses assuntos, e como é apropriado a você, como cristão, daqui por diante, abundar mais nas obras de amor. Não use a desculpa de que não tem oportunidades de fazer alguma coisa para a glória de Deus, pelo interesse do Reino do Redentor, e pelo benefício espiritual de seu próximo.
Se seu coração estiver cheio de amor, encontrará abertura; você achará ou criará modos suficientes para expressar seu amor em atos. Quando uma fonte abunda com água, espalhará torrentes. Considere que, assim como um princípio de amor é o maior princípio no coração de um cristão verdadeiro, também a obra do amor é o assunto principal da vida cristã.

Que todos os cristãos considerem essas coisas; e que o Senhor lhes dê entendimento em todas as coisas, e faça-os sensíveis de qual espírito lhes é adequado, e os disponha a essa vida excelente, amável e benevolente, que é correspondente a tal espírito, para que vocês possam amar não apenas “em palavra e língua, mas em obras e na verdade.” 

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