quinta-feira, 28 de maio de 2015

AS MAIORES REALIZAÇOES OU SOFRIMENTOS SÃO VÃOS SEM A CARIDADE


AS MAIORES REALIZAÇÕES OU SOFRIMENTOS SÃO VÃOS SEM A CARIDADE
1 Coríntios 13:3
“E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria.”

N
os versículos anteriores deste capítulo, a necessidade e excelência da caridade são apresentadas, como vimos, pela sua precedência sobre os maiores privilégios, e devido à completa futilidade e insignificância destes sem ela. Os privilégios mencionados em particular são aqueles que consistem nos dons extraordinários do Espírito de Deus. Neste versículo, coisas de outro tipo são mencionadas, isto é, coisas de natureza moral. É declarado que nenhuma dessas é útil sem a caridade. E, particularmente,
Primeiro, que nossas realizações são vãs sem ela. Eis um dos tipos mais elevados de realizações exteriores mencionadas, isto é, dar todos os bens para alimentar os pobres. Dar ao pobre é um dever muito insistido na Palavra de Deus, e, em particular, sob a dispensação cristã. Nos tempos do cristianismo primitivo, as circunstâncias da Igreja eram tais que pessoas eram por vezes chamadas a dividir tudo o que tinham e dar aos outros. Isso ocorria, em parte, devido às extremas necessidades daqueles que eram perseguidos e sofriam aflições, e, em parte, por que as dificuldades que acompanhavam o seguir a Cristo e fazer a obra do evangelho eram tais que obrigavam os discípulos a desembaraçar-se do cuidado e peso das posses mundanas, e a seguir em frente, por assim dizer, sem ouro ou prata nas suas bolsas, ou alforje, ou até mesmo duas capas.
O apóstolo Paulo nos diz que sofreu a perda de todas as coisas por Cristo; e os cristãos primitivos, na igreja de Jerusalém, vendiam tudo o que tinham, e depositavam num fundo comum, e “ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía” (Atos 4.32).
O dever de dar ao pobre era o que os cristãos coríntios, desta vez, tinham ocasião especial para considerar; não apenas devido aos muitos problemas dos tempos, mas também devido à grande penúria ou fome que enormemente afligia os irmãos da Judeia. Por essa causa, o apóstolo já havia rogado aos coríntios, como dever deles, enviar-lhes alívio, falando disso particularmente nesta epístola, no capítulo 16 (e também na sua segunda epístola à mesma igreja, no oitavo e nono capítulos). E ainda assim, embora diga tanto, em ambas as epístolas, para animá-los ainda mais no dever de dar aos pobres, é ainda bem cuidadoso em informá-los de que, embora devessem sempre avançar nisso, embora devessem contribuir com todos os seus bens para alimentar os  pobres, se não tivessem caridade, isso de nada adiantaria.
Segundo, o apóstolo ensina que não apenas nossas realizações, mas também nossos sofrimentos são vãos sem a caridade. Os homens são rápidos em superestimar o que fazem, mas ainda mais o que sofrem. São rápidos em reputar como algo grandioso quando se colocam nesse caminho, ou têm grandes custos ou sofrimentos por sua religião. O apóstolo aqui menciona um sofrimento do mais extremo tipo, sofrimento até a morte, e mesmo os tipos mais terríveis de morte; e diz que mesmo isso é nada sem a caridade. Quando alguém deu todos os seus bens, nada tem mais para dar, a não ser a si mesmo. E o apóstolo ensina que, quando um homem deu todas as suas posses, se ele prossegue para dar o próprio corpo, mesmo para ser consumido pelas chamas, não valerá de nada, se não for feito por amor sincero no coração.
O apóstolo escreveu aos coríntios em um tempo em que os cristãos eram com frequência chamados não apenas para dar seus bens, mas também seus corpos, pela causa de Cristo. Pois a igreja, à época, estava geralmente sob perseguição, e multidões foram, então, ou logo depois, levadas à morte pelos meios mais cruéis, pela causa do evangelho. Mas, embora sofressem em vida, ou suportassem a morte mais agonizante, seria tudo em vão sem a caridade.
O que se quer dizer por essa caridade já foi explicado nos discursos anteriores sobre estes versos, nos quais foi mostrado que a caridade é a soma de tudo o que é distinto na religião do coração.
Portanto, a doutrina que derivarei destas palavras é esta:
TUDO QUE OS HOMENS POSSAM FAZER, E TUDO QUE POSSAM SOFRER, JAMAIS PODE SUBSTITUIR A NECESSIDADE DO AMOR CRISTÃO SINCERO NO CORAÇÃO.
I. Pode haver grandes realizações, bem como grandes sofrimentos, sem o amor cristão sincero no coração.
1. Pode haver grandes realizações sem o amor. O apostolo Paulo, no terceiro capitulo da epístola aos Filipenses, nos conta as coisas que fez antes de sua conversão, enquanto era um fariseu. No quarto versículo diz: “Se algum outro cuida que pode confiar na carne, ainda mais eu.” Muitos dos fariseus fizeram grandes coisas, e abundaram nas realizações religiosas. O fariseu mencionado em Lucas 18.11,12, se gabava das grandes coisas que fizera, tanto para com Deus quanto para com os homens, e agradecia a Deus por ter excedido nisso os outros homens.
Muitos dos pagãos foram eminentes por suas realizações, alguns por sua integridade, ou por sua justiça, e ainda outros por suas grandes obras pelo bem público. Muitos homens, sem qualquer sinceridade de amor nos corações, têm sido muito magnânimos nas suas ofertas para usos piedosos e filantrópicos, e trouxeram para si fama renomada, e tiveram seus nomes registrados na história, para a posteridade, com grande glória. Muitos fizeram grandes coisas por temerem o inferno, esperando dessa forma aplacar a Deidade e fazer expiação por seus pecados, e muitos fizeram grandes coisas pelo orgulho, movidos por um desejo de reputação e honra entre os homens.
Embora esses motivos não costumem influenciar os homens a uma obediência total e constante dos mandamentos de Deus, e a persistir em um curso de realizações cristãs, e com a prática de todos os deveres devidos a Deus e ao homem, por toda a vida, contudo, é difícil dizer o quão longe esses princípios naturais podem levar os homens em deveres e realizações particulares. E assim,
2. Pode haver grandes sofrimentos pela religião, contudo sem sinceridade no coração. Pessoas podem suportar grandes sofrimentos na vida, assim como os fariseus costumavam se impor grandes severidades, penitências e inflições voluntárias.
Muitos realizaram cansativas peregrinações, e se privaram dos benefícios e prazeres da sociedade humana, ou passaram suas vidas nos desertos e na solidão; alguns suportaram a morte, dos quais não há motivo para pensar que não tivessem amor sincero por Deus no coração. Multidões entre os papistas foram e aventuraram voluntariamente suas vidas nas guerras santas, esperando merecer o céu por isso. Nas guerras com os turcos e sarracenos, chamadas de guerras santas ou Cruzadas, milhares foram voluntariamente a todos os perigos do conflito, na esperança de assim assegurar o perdão dos seus pecados e as recompensas da gloria porvir. Muitos milhares, até mesmo alguns milhões, perderam as vidas nesses caminhos, ao ponto de haver perda considerável de população em muitas partes da Europa.
Muitos dos turcos estavam extremamente enfurecidos, a ponto de aventurar suas vidas, e apressar-se, por assim dizer, em direção às espadas dos inimigos, porque Maomé prometeu que todos que morressem na guerra, na defesa da fé muçulmana, iriam imediatamente ao Paraíso.
A história nos conta de alguns que se entregaram voluntariamente à morte, devido à mera obstinação e teimosia de espírito, ao invés de cederem às ordens de outros, quando poderiam, sem desonra, salvar suas vidas. Muitos entre os pagãos morreram por seus países, e muitos mártires por uma falsa fé, embora jamais no mesmo número, nem da mesma forma que os que pereceram mártires pela verdadeira religião. E em todos estes casos, muitos sem dúvidas suportaram esses sofrimentos, ou encontraram a morte, sem ter qualquer amor divino sincero nos seus corações. Mas,
II. O que quer que os homens possam fazer ou sofrer, não podem, por todas as suas realizações e sofrimentos, substituir a falta de amor sincero no coração.
 Se eles sempre se disporem nas coisas da religião; e se sempre forem muito envolvidos em atos de justiça, bondade e devoção; e se suas orações e jejuns forem sempre muito multiplicados; ou se gastarem sempre seu tempo assim nas formas de culto religioso, concedendo a ele dias e noites, e negando sono aos olhos e descanso para as suas pálpebras, para que sejam mais operantes nos exercícios religiosos, e se as coisas que fizerem na religião forem suficientes para garantir-lhes um nome em todo o mundo e torná-los famosos por todas as gerações futuras, tudo seria vão sem amor sincero para com Deus no coração.
Por isso, se um homem doar mais liberalmente para usos religiosos ou de caridade; e se, possuindo as riquezas de um reino, doar tudo, e, do esplendor de um príncipe terreno, reduzir-se a um nível de mendigos, e se ele não deva parar por aí, mas quando tiver feito isso tudo,permitir-se sofrer os mais agudos sofrimentos, dando não só todos os seus bens, mas também o seu corpo para ser vestido por trapos, ou para ser mutilado, queimado e atormentado tanto quanto a sagacidade do homem possa conceber, mesmo tudo isso não iria compensar a falta de amor sincero para com Deus no coração. E é claro que não iria, pelas seguintes razões:
1. Não é o trabalho externo feito, ou os sofrimentos suportados, que são, em si, dignos de algo diante de Deus.
Os movimentos e exercícios do corpo, ou qualquer coisa que possa ser feita por ele, se considerados separadamente do coração - a parte interior do homem - não é de mais conseqüência ou valor à vista de Deus do que os movimentos das coisas inanimadas. Se algo for oferecido ou dado, ainda que seja de prata ou de ouro, ou o gado de mil pastos, ainda que seja mil carneiros, ou dez mil rios de óleo, não há nada de valor neles, como coisa externa, aos olhos de Deus. Se Deus tivesse necessidade dessas coisas, poderiam ser de grande valor para ele, consideradas em si mesmas, independentemente dos motivos do coração que levaram à sua oferta.
Nós muitas vezes necessitamos de coisas boas externas e, portanto, essas coisas, oferecidas ou dadas a nós, podem e têm valor para nós, consideradas em si mesmas. Mas Deus não tem necessidade de nada. Ele é todo-suficiente em si mesmo. Ele não é alimentado pelos sacrifícios de animais, nem enriquecido pela oferenda de prata ou ouro, ou pérolas: “Todos os animais da floresta são meus, e o gado sobre milhares de montanhas. Se eu tivesse fome, não to diria, pois o mundo é meu, e toda a sua plenitude” (Sl 50:10, 12). “Todas as coisas vêm de ti, e do que é teu to damos. Ó Senhor, nosso Deus, toda esta abundância, que preparamos para te edificar uma casa ao teu santo nome, vem da tua mão, e é toda tua.” (1 Cr. 29:14, 16).
Como não há nada rentável para Deus em qualquer dos nossos serviços ou desempenhos, por isso não pode haver nada aceitável ​​à sua vista em uma mera ação externa sem amor sincero no coração, pois o Senhor não vê como vê o homem, pois o homem olha o exterior, mas Deus olha para o coração.” O coração é tão nu e aberto para ele como as ações externas. E, portanto, ele vê nossas ações, e toda a nossa conduta, não apenas como os movimentos externos de uma máquina, mas, como as ações de criaturas racionais, inteligentes e voluntárias, agentes livres; portanto, não pode haver, em sua estima,  excelência ou amabilidade em qualquer coisa que possamos fazer, se o coração não for justo diante dele.
Deus não tem prazer em quaisquer sofrimentos que possamos suportar, em si mesmos considerados. Ele não ganha com  os tormentos que os homens possam sofrer, nem se delicia ao vê-los expondo-se ao sofrimento, a não ser que seja por algum bom motivo, ou para algum bom propósito e fim. Por vezes, pode ser preciso que nossos semelhantes, amigos e vizinhos, sofram por nós, e nos ajudem a suportar nossos fardos, e sofram inconveniências para o nosso bem. Mas Deus não tem essa necessidade de nós; portanto, os nossos sofrimentos não são aceitáveis ​​para ele, considerados meramente como sofrimentos suportados por nós, e não têm significado para além do motivo que nos leva a suportá-los. Não importa o que possa ser feito ou sofrido: nem obras, nem sofrimentos irão compensar a falta de amor a Deus na alma. Eles não são proveitosos ​​para Deus, nem amáveis por si mesmos à sua vista. Nem podem substituir a ausência do amor a Deus e aos homens, que é a soma de tudo o que Deus requer de suas criaturas morais.
2. O que quer que se faça ou sofra, contudo, se o coração estiver afastado de Deus, nada é realmente dado a ele.
O ato de um indivíduo, naquilo que faz ou sofre, é em toda situação reputado não como o ato de um mecanismo sem vida ou de uma máquina, mas como o ato de um ser inteligente, voluntário e moral. Pois, certamente, uma máquina não é propriamente capaz de oferecer alguma coisa: e se essa máquina, que não tem vida, sendo movida por molas ou cargas, coloca algo diante de nós, não se pode dizer propriamente que ela nos deu algo. Harpas e címbalos, e outros instrumentos musicais, eram há muito tempo usados no louvor a Deus no templo e em outras partes. Mas não se poderia dizer que esses instrumentos sem vida davam louvores a Deus, porque não tinham pensamento, nem entendimento, vontade, ou coração para acrescentar valor aos seus sons agradáveis.
Logo, ainda que um homem tenha um coração, um entendimento e uma vontade, contudo, se quando dá algo a Deus, dá-lhe sem seu coração, verdadeiramente nada é dado a Deus mais do que é dado pelo instrumento musical. Aquele que não tem sinceridade em seu coração, não tem real respeito por Deus naquilo que aparenta dar, ou em todas as suas realizações ou sofrimentos, porquanto Deus não é seu fim principal naquilo que faz ou dá. O que é dado, é dado para aquilo que o indivíduo toma como seu grande fim em dar. Se seu fim for ele próprio apenas e não Deus, e se seu objetivo for sua própria honra ou comodidade, ou o ganho mundano, então a oferta é apenas um oferecimento a essas coisas. O presente é uma oferta àquele a quem se devota o coração do doador, e a quem ele o designa. É o alvo do coração que faz a realidade do presente; e se o alvo sincero do coração não for Deus, então, na realidade, nada lhe é dado, não importa o que se faça ou sofra. De modo que seria um grande absurdo supor que qualquer coisa que possa ser ofertada  ou dada a Deus, possa substituir a ausência de amor por ele no coração; pois, sem isso, nada é realmente dado, e o aparente presente é tão somente zombaria ao Altíssimo. Isto se evidencia ainda mais,
3. Pelo fato de que esse amor, ou caridade, ser a suma de tudo o que Deus requer de nós.
É absurdo supor que algo possa substituir a falta daquilo que é a soma de tudo o que requer. A caridade ou amor é algo que tem sua sede no coração, e na qual, como vimos, consiste tudo o que é salvífico e distinto no caráter cristão. Este é o amor de que nosso Salvador fala como a soma de tudo requerido nas duas tábuas da lei; e que o Apóstolo declara que é o cumprimento da lei. E como podemos substituir o efeito, quando, por sustentá-lo, nós, com efeito, sustentamos a soma de tudo o que Deus requer de nós? Seria absurdo supor que possamos substituir algo que é requerido oferecendo outra coisa que [também] é requerida – que possamos substituir uma dívida pagando outra.
Mas é absurdo ainda maior supor que possamos substituir toda a dívida sem pagar nada, mas persistindo em reter tudo o que é requerido. Quanto às coisas externas, sem o coração, Deus fala delas não como sendo as coisas que requer (Is 1:12), e exige que o coração lhe seja dado, se quisermos que a oferta externa seja aceita.
4. Se fizermos uma grande exibição de respeito e amor a Deus, em ações externas, enquanto não houver sinceridade no coração, isso é apenas hipocrisia e, na prática, é mentir ao Santo.
Fingir esse respeito e amor, quando não sentido no coração, é agir como se pudéssemos enganar a Deus. É fazer como Israel, no deserto, após ter sido liberto do Egito, quando se diz que eles “lisonjeavam-no com a boca e com a língua lhe mentiam.” (Sl 78:36) Mas, certamente, é absurdo que possamos substituir a falta de respeito sincero pela lisonja e fraude, a ponto de supor que possamos substituir a falta da verdade pela falsidade e mentira.
5. O que quer que possa ser feito ou sofrido, se não houver sinceridade no coração, é tão somente oferta a algum ídolo.
 Como anteriormente observado, não há nada, no caso suposto, realmente ofertado a Deus, portanto, segue-se que é ofertado a algum outro ser, objeto ou fim; e seja lá o que isso for, é o que as Escrituras chamam de ídolo. Em todas as ofertas semelhantes a essa, algo é virtualmente adorado, e seja o que for, seja o eu, nossos semelhantes ou o mundo, permite-se que isso usurpe o lugar que deveria ser dado a Deus, e receba as ofertas que lhe deveriam ser feitas. E como é absurdo supor que possamos substituir a retenção daquilo que é devido a Deus, ofertando algo a nosso ídolo! É tão absurdo quanto supor que a esposa possa substituir a falta de amor a seu marido dando sua afeição que lhe é devida a outro homem, que é um estranho; ou que ela possa substituir a sua falta de fidelidade a ele pela culpa do adultério.
Na aplicação desse assunto, incumbe-nos usá-lo,
1. Como forma de autoexame.
Se for assim de fato de que tudo o que possamos fazer ou sofrer é vão, se não houver amor sincero a Deus no coração, então isso deve nos levar a sondar a nós mesmos quanto a se temos ou não este amor em sinceridade em nossos corações.
Há muitos que fazem profissão e amostra de religião, e alguns que fazem muitas das coisas externas que ela requer; e é possível que pensem que tenham feito e sofrido muito por Deus e pelo seu serviço. Mas, a grande questão é: o coração tem sido sincero nisso tudo, e tem sofrido ou agido pelo respeito à glória divina?
Sem dúvida, se examinarmos a nós mesmos, podemos ver muita hipocrisia. Mas há alguma sinceridade? Deus abomina as maiores coisas sem sinceridade, mas aceita e se deleita nas coisas pequenas quando fluem do amor sincero a ele. Um copo de água fria, dado a um discípulo em amor sincero, é mais digno à vista de Deus do que alguém dar todos os bens para alimentar o pobre, sim, do que entregar a riqueza de um reino, ou oferecer o corpo às chamas, sem amor. E Deus aceita até mesmo um pequeno, mas sincero, amor. Ainda que haja muita imperfeição, mas, se houver qualquer sinceridade verdadeira em nosso amor, esse pouco não será rejeitado porque haja alguma hipocrisia nele. E aqui pode ser útil observar que há estas quatro coisas que pertencem à natureza da sinceridade, isto é, verdade, liberdade, integridade e pureza.
Primeiro, verdade. Ou seja, que deva haver verdadeiramente no coração aquilo que aparece e se exibe na ação externa. Onde há, de fato, verdadeiro respeito a Deus, o amor que o honra será sentido no coração, tão extensamente quanto há exibição dele em palavras e atos. Nesse sentido, é dito no Salmo 51, “Eis que te comprazes na verdade no íntimo” E, é nesse sentido que se fala da sinceridade nas Escrituras como oposta à hipocrisia, e que se diz que um cristão sincero é alguém que é, de fato, como aparenta ser – alguém “sem dolo.” (Jo 1:47)
Examine a si mesmo, portanto, com respeito a essa questão. Se em suas ações externas houver uma aparência ou exibição de respeito a Deus, investigue se isso é apenas externo, ou se é sinceramente sentido no coração; pois sem amor ou caridade verdadeiros você nada é.
A segunda coisa na natureza da sinceridade é a liberdade. Quanto a isso, especialmente, a obediência a Cristo é chamada de filial, ou obediência de filho, pois é uma obediência inocente e livre, e não legal, servil e forçada; mas é algo que é realizado pelo amor e com prazer. Deus é escolhido por si mesmo; e a santidade por si mesma, e por causa de Deus. Cristo é escolhido e seguido porque é amado, e a religião porque é amada, e a alma nela se regozija, achando em seus deveres a mais alta felicidade e prazer.
Examine a si mesmo fielmente quanto a este ponto, se esse é ou não o seu caráter.
A terceira coisa que pertence à natureza dessa sinceridade é a integridade. A palavra significa totalidade [wholeness] intimando que onde esta sinceridade existe, Deus é buscado, e a religião é escolhida e abraçada com todo o coração, e aderida com toda a alma. A santidade é escolhida com todo o coração. O todo do dever abraçado, e abordado muito cordialmente, quer diga respeito a Deus, quer ao homem, seja fácil ou difícil, tenha referência às pequenas ou às grandes coisas. Há proporção e plenitude no caráter. Todo o homem é renovado. O corpo inteiro, a alma e o espírito são santificados. Cada membro é entregue à obediência de Cristo. Todas as partes da nova criatura são trazidas em obediência à sua vontade. As sementes de todas as santas disposições são implantadas na alma, e elas irão mais e mais produzir frutos na realização do dever para a glória de Deus.
A quarta coisa que pertence à natureza da sinceridade é a pureza. A palavra sincero frequentemente significa puro. Assim ocorre em 1 Pedro 2.2: “Desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação,i. e. puro, sem mistura, não adulterado. Isto aparece na oposição da virtude ao pecado. Um é referido como corrupção, impureza e imundície; o outro, como aquilo que está livre dessas coisas. O apóstolo compara o pecado a um corpo de morte, ou a um corpo morto, que é a mais poluída e contaminada de todas as coisas, enquanto a santidade é referida como pureza e as delícias santas como delícias puras, e os santos no céu como sem mácula diante do trono de Deus. Investigue, então, se essa pureza lhe pertence, e se estiver em sua posse, você encontrará a evidência de que ama sinceramente a Deus.
Este assunto pode também,
2. Convencer aqueles que ainda se encontram em um estado não regenerado, de sua condição perdida.
Se for assim, de fato, que por tudo o que possa ou fazer ou sofrer, você não pode substituir a falta de um amor santo e sincero em seu coração, então, segue-se que você se encontra em uma arruinada condição até que tenha obtido a graça regeneradora de Deus para renová-lo a um espírito reto no seu interior. Faça o que desejar, ou suporte e sofra o que quiser, você não pode ser libertado de sua impiedade sem a graça regeneradora de Deus. Se você abundar em orações, isso não fará sua situação menos miserável, a menos que Deus, pelo seu grande poder, se agradar em lhe dar um novo coração. Se você se esforçar sobremodo na religião, e opor-se e negar a si mesmo, e fizer ou sofrer o máximo, tudo será vão sem aquele amor.
Portanto, o que quer que tenha feito, ainda que possa se reportar a um grande número de orações oferecidas, e muito tempo gasto na leitura e meditação, você não tem razão em pensar que essas coisas fizeram qualquer expiação pelos seus pecados, ou tornaram sua situação menos deplorável, ou lhe deixaram em outra situação que não a de uma criatura miserável, perdida, infeliz, culpada e arruinada.
Os homens naturais, não regenerados, ficariam felizes em ter algo para substituir a falta do amor sincero e da graça real em seus corações. Muitos, de fato, fazem grandes coisas para substituir essa falta, enquanto outros estão dispostos a sofrer grandes coisas. Mas, infelizmente, como isso tudo é insignificante! Não importa o que possam fazer ou sofrer, isso não muda seu caráter. Se construírem suas esperanças sobre isso, nada fazem senão iludir-se, e alimentar-se com o vento oriental.
Se esse for o seu caso, considerem como serão miseráveis enquanto viverem sem esperança na única fonte verdadeira de esperança, e como serão miseráveis quando vierem a morrer, quando a visão da rainha dos terrores, [a morte], lhes mostrar a nulidade e vaidade de todos os seus atos! Como serão miseráveis quando virem Cristo vindo para o julgamento nas nuvens do céu! Então estarão dispostos a fazer e sofrer qualquer coisa, para que sejam aceitos por ele. Mas ações ou sofrimentos não aproveitarão. Não expiarão os seus pecados, nem lhes darão o favor de Deus, nem lhes salvarão das esmagadoras tempestades de sua ira. Portanto, não descansem em nada que tenham feito ou sofrido, ou que possam fazer ou sofrer; descansem apenas em Cristo. Que seu coração seja cheiro de amor sincero a ele; e, então, no grande último dia, ele o admitirá como seu seguidor e amigo.
O assunto também,
3.  Exorta a todos, a ardentemente acalentar o amor cristão sincero em seus corações.
Se assim for que isso seja de necessidade tão grande e absoluta, então, que isso seja a coisa maior que vocês busquem. Com diligência e oração, busque-a; e busque-a de Deus, e não de você mesmo. Somente ele é que pode concedê-la. É algo muito acima do poder não assistido da natureza; pois, ainda que possa haver grandes realizações, e também grandes sofrimentos, contudo, sem amor sincero são todos vãos. Tais ações e sofrimentos podem, de fato, ser requeridas de nós, como seguidores de Cristo, e como forma de dever; mas não devemos descansar nelas, ou sentir que tenham qualquer mérito ou dignidade em si mesmas. Na melhor das hipóteses, são apenas a evidência externa e o fluxo de um espírito reto no coração.
Seja exortado, então, a acalentar o amor sincero, ou a caridade cristã, como a coisa maior no coração. É o que você deve ter, e sem ela não há nada que sirva de auxílio a sua situação. Sem ela, tudo tenderá, de alguma forma, apenas para aprofundar sua condenação, e para tão-somente afundá-lo nas maiores profundidades do mundo do desespero!

domingo, 17 de maio de 2015

A CARIDADE É MAIS EXCELENTE QUE OS DONS EXTRAORDINÁRIOS DO ESPÍRITO



A CARIDADE É MAIS EXCELENTE QUE OS DONS EXTRAORDINÁRIOS DO ESPÍRITO
Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine.2 Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, eu nada seria.
- 1 Coríntios 13:1,2
T

endo no último sermão mostrado que toda a virtude nos santos que os distingue e salva pode ser resumida no amor cristão, considero agora as coisas com as quais ele é comparado no texto, e a quem é dada a preferência.
As coisas comparadas no texto são de dois tipos: por um lado, os dons extraordinários e miraculosos do Espírito, tais como o dom de línguas, profecias, etc., que eram frequentes naquela época, e, em particular, na igreja de Corinto. Por outro lado, o efeito das influências ordinárias do mesmo Espírito nos cristãos verdadeiros, isto é, a caridade ou amor divino.
Aquele foi um tempo de milagres. Não acontecia então como outrora entre os judeus, quando dois ou três ou, no máximo, poucos em toda a nação tinham o dom de profecia. Parecia, ao contrário, que o desejo de Moisés, registrado em Números 11:29, houvesse em grande medida se cumprido: “Tomara que todo o povo do SENHOR fosse profeta”.
Não apenas certas pessoas de grande eminência eram agraciadas com esses dons, mas eram comuns a tipos diversos, velhos e jovens, homens e mulheres, de acordo com a profecia de Joel, que, pregando acerca desses dias, previu de antemão este grande evento: “Depois disto, derramarei o meu Espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens terão visões.
A igreja de Corinto, em especial, era muito reconhecida por esses dons. Lá havia toda sorte de dons miraculosos, como transparece nesta epístola, concedidos àquela igreja; e o número dos que os desfrutavam não era pequeno.
“A um”, diz o apóstolo, “o Espírito dá a mensagem de sabedoria, a outro, a palavra de ciência segundo o mesmo Espírito; a outro o mesmo Espírito dá a fé; a outro ainda o único e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, o dom de falar em línguas, a outro ainda, o dom de as interpretar.  Mas é o único e mesmo Espírito que isso tudo realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz.”
Assim, alguns tinham um dom, outros, outro. “Mas,” diz o apóstolo, “aspirai aos dons mais altos. Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos.” Ou seja, algo mais excelente que todos esses dons considerados juntos, sim, algo de tamanha importância, sem o qual todos eles se reduzem a nada.
Pois, “Ainda que eu falasse línguas, as dos homens,” como ocorreu no dia de Pentecostes, e, em adição, “as dos anjos”, e “se eu não tivesse a caridade, seria” algo vazio e inútil, “como um bronze que soa ou como um címbalo que tine. Ainda que eu tivesse” não apenas isso, mas todos os dons extraordinários do Espírito, e pudesse não apenas falar em línguas, mas “tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência,” para perscrutar todas as coisas profundas de Deus por inspiração imediata; “ainda que tivesse toda a fé” para realizar todo tipo de milagres, sim, mesmo “a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, eu nada seria.”
A caridade, então, que é o fruto da influência santificadora ordinária do Espírito Santo, é preferida como mais excelente que quaisquer, e até mesmo, todos os dons extraordinários do Espírito. Esse é o mesmo amor cristão que, como foi demonstrado, é a soma de toda graça salvífica. Sim, é tão mais preferida que, todos eles sem ela, nada são e não possuem valor algum.
Portanto, a doutrina ensinada é:
A INFLUÊNCIA ORDINÁRIA DO ESPÍRITO DE DEUS, OPERANDO A GRAÇA DA CARIDADE NO CORAÇAO, É MAIS EXCELENTE BENÇÃO QUE QUAISQUER DOS DONS EXTRAORDINÁRIOS DO ESPÍRITO.
Aqui me esforçarei em mostrar, primeiro, o que se quer dizer por dons ordinários e extraordinários do Espírito; segundo, que esses dons são, de fato, grandes privilégios; e ainda, terceiro, que a influência ordinária do Espírito, operando a graça da caridade, ou amor, no coração, é uma benção mais excelente.
I. Explicarei brevemente o que se quer dizer por dons ordinários e extraordinários do Espírito, pois os teólogos distinguem os dons e operações do Espírito de Deus em comuns e salvíficos, e em ordinários e extraordinários.
1. Os dons e operações do Espírito de Deus são distinguidos entre os que são comuns e os que são salvíficos.
Por dons comuns do Espírito denominam-se aqueles que são comuns tanto aos crentes quanto aos ímpios. Há certas maneiras em que o Espírito influencia a mente dos homens naturais da mesma forma que a dos justos. Assim, há convicções comuns de pecado, ou seja, convicções que os ímpios têm tanto quanto os justos. Também há iluminações ou esclarecimentos, isto é, de tipos que são comuns a ambos. Também há afeições religiosas – gratidão comum – aflição comum, e coisas semelhantes.
Mas há outros dons do Espírito que são peculiares aos santos, tais como a fé e o amor salvíficos, e todos as outras graças salvíficas do Espírito.
2. Ordinários e extraordinários.
Os dons extraordinários do Espírito, tais como os dons de línguas, profecias, milagres, etc., são chamados extraordinários porque são dos tipos que não são concedidos no curso ordinário da providência de Deus. Não são concedidos na maneira ordinária de Deus se relacionar providencialmente com seus filhos, mas apenas em ocasiões especiais, como foram concedidos aos profetas e apóstolos para capacitá-los a revelar o propósito e vontade de Deus antes que o cânon da Escritura estivesse completo, e também na igreja primitiva, a fim de fundá-la e estabelecê-la no mundo. Mas desde que o cânon está completo, e a igreja cristã plenamente fundada e estabelecida, esses dons extraordinários cessaram.
Mas os dons ordinários do Espírito são dos tipos que continuam na Igreja de Deus por todas as eras; tais dons são obtidos na convicção e conversão, e também pertencem à edificação dos santos na santidade e conforto.
Pode-se observar, então, que a distinção entre os dons do Espírito em ordinários e extraordinários é muito diferente da outra distinção em comuns e salvíficos. Pois alguns dos dons ordinários, como a fé, esperança, caridade, não são dons comuns. São do tipo que Deus ordinariamente concede a sua Igreja em todas as eras, mas não são comuns aos justos e aos ímpios: são peculiares aos justos.
Já os dons extraordinários, são comuns. O dom de línguas, milagres, profecias, etc., embora não sejam ordinariamente dispensados à Igreja cristã, mas apenas em circunstâncias extraordinárias, não são, contudo, peculiares aos santos, pois muitos ímpios possuíram tais dons: “Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos e em teu nome que expulsamos demônios e em teu nome que fizemos muitos milagres? Então eu lhes declararei: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade.” (Mt 7:22,23)
Tendo explicado estes termos, prossigo agora para mostrar:
II. Que os dons extraordinários do Espírito de Deus, de fato, são grandes privilégios.
Quando Deus agracia alguém com um espírito de profecia; favorece-o com inspiração imediata; ou dá-lhe o poder de realizar milagres, curar doentes, expelir demônios, e coisas semelhantes, grande é o privilégio. Sim, este é um dos maiores tipos de privilégios que Deus pode conceder aos homens, ao lado da graça salvífica.
É um grande privilégio viver no gozo dos meios exteriores de graça, e pertencer à igreja visível; mas ser um profeta e operador de milagres na Igreja é privilégio ainda maior. É grande privilégio ouvir a Palavra que foi dita pelos profetas e pelos homens inspirados, mas é privilégio maior ainda ser um profeta, pregar a Palavra, ser inspirado por Deus para fazer conhecidos a outros seu propósito e vontade.
Foi um grande privilégio que Deus concedeu a Moisés, quando o chamou para ser profeta, e o empregou como instrumento para revelar a Lei aos filhos de Israel, e entregar à igreja grande parte da Palavra escrita de Deus (palavra essa que foi a primeira revelação entregue) e quando o usou como instrumento para a realização de tantas maravilhas no Egito, às margens do Mar Vermelho, e no deserto.
Grande foi o privilégio concedido a Davi por Deus, ao inspirá-lo, e torná-lo escritor de porção tão grandiosa e excelente de sua Palavra, para o uso da Igreja em todos os tempos.
Grande foi o privilégio que Deus concedeu àqueles dois profetas, Elias e Eliseu, ao capacitá-los para operar obras tão miraculosas e maravilhosas.
E foi muito grande o privilégio concedido a Daniel, quando Deus lhe deu tantos dos extraordinários dons do Espírito, em particular o entendimento das visões de Deus. Isso lhe assegurou grande honra entre os pagãos, e até mesmo na corte do rei da Babilônia.
Nabucodonosor, aquele grande e poderoso monarca, admirou tanto Daniel por esses dons, que certa vez quase o adorou como a um deus. Prostrou sua face diante dele, e ordenou que uma oblação e sacrifício de aroma suave lhe fosse oferecido (Dan 2:46). E Daniel foi levado a ter maior honra que todos os sábios, magos, astrólogos e adivinhos da Babilônia, em consequência destes dons extraordinários que Deus lhe concedera. Ouçam como a rainha fala acerca dele para Belsazar (Dan 5:11, 12): “Há um homem, no teu reino, no qual habita o espírito dos deuses santos. Nos dias de teu pai, nele encontrou-se luz, inteligência e sabedoria igual à sabedoria dos deuses. O rei Nabucodonosor, teu pai, nomeou-o chefe dos magos, adivinhos, caldeus e astrólogos. Portanto, uma vez que nesse Daniel, que o rei cognominou Baltassar, constatou-se um espírito extraordinário, conhecimento, inteligência e arte de interpretar os sonhos, de resolver os enigmas e de desfazer os nós, manda comparecer Daniel e ele te dará a conhecer a interpretação.”
Também foi esse privilégio que deu a Daniel grande proeminência na corte persa: “Aprouve a Dario estabelecer sobre o seu reino cento e vinte Sátrapas, os quais se distribuiriam por todo o reino e estariam submetidos a três ministros — um dos quais era Daniel — a quem os sátrapas deveriam prestar contas. Isso, a fim de que o rei não fosse defraudado. Ora, Daniel distinguia-se tanto entre os ministros e os sátrapas, porque nele havia um espírito extraordinário, que o rei se propôs colocá-lo à frente de todo o reino.” (Dn 6:1-3) Por esse espírito excelente pretendia-se dizer, sem dúvida, entre outras coisas, o espírito de profecia e a inspiração divina, pelos quais ele havia sido tão honrado pelos príncipes da Babilônia.
Foi grande o privilégio concedido por Cristo aos apóstolos, ao enchê-los com os dons extraordinários do Espírito Santo, inspirando-os a ensinar a todas as nações, e ao torná-los, por assim dizer, íntimos dele, e ser as doze pedras preciosas que são consideradas os doze fundamentos da Igreja: “E o muro da cidade tinha doze fundamentos e, neles, os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro.” (Ap 21:14) “Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina.” (Ef 2:20)
E como foi altamente favorecido o apóstolo João, quando estava “em Espírito, no Dia do Senhor” e teve visões tão extraordinárias, representando os grandes eventos da providência de Deus em relação à igreja, em todas as suas eras, até o fim do mundo.
Esses dons extraordinários do Espírito são mencionados nas Escrituras como grandes privilégios. Assim foi o privilégio que Deus concedeu a Moisés ao falar-lhe por meio de revelação miraculosa extraordinária, por assim dizer, “face a face”. E aquele derramamento do Espírito, com seus dons extraordinários, no dia de Pentecostes, foi previsto e anunciado pelo profeta Joel como um grande privilégio, nas supracitadas palavras de Jl 2:28,29. E Cristo fala dos dons de milagres e de línguas como grandes privilégios que seriam concedidos àqueles que cressem nele (Mc 16. 17,18).
Esses dons extraordinários do Espírito têm sido vistos como uma grande honra. Moisés e Arão foram invejados no acampamento por causa da honra peculiar que Deus lhes concedera (Sl 106:16). E assim Josué prontamente invejou Eldade e Meldade porque profetizaram no arraial (Nm 11:27). E quando os próprios anjos foram enviados a fazer o ofício dos profetas, revelando coisas futuras, [isso] os colocou em muito honroso ponto de luz.
Até mesmo o apóstolo João, tomado por grande surpresa, foi, de imediato, se prostrar e adorar aquele anjo que foi enviado por Cristo para lhe revelar os futuros eventos da igreja. Mas o anjo o proíbe, reconhecendo que o privilégio do espírito de profecia que estava sobre ele não procedia de si, mas que o havia recebido de Jesus Cristo (Ap 19:10 e 22:8,9).
Os pagãos da cidade de Listra ficaram tão impressionados com o poder que Paulo e Barnabé tinham para realizar milagres que estavam prestes a lhes oferecer sacrifícios como a deuses (At 14:11-13). E Simão, o mago, teve grande desejo pelo dom que os apóstolos possuíam de conferir o Espírito Santo pela imposição das mãos, e ofereceu-lhes dinheiro por ele.
Esses dons extraordinários do Espírito são grandes privilégios, pois há neles grande conformidade com Cristo no seu ofício profético. E também se evidencia a grandeza do privilégio pelo fato de que embora, às vezes, fossem concedidos a homens naturais, era, contudo, muito raramente. Comumente os agraciados com eles foram os santos, os mais eminentes deles.
Assim foi no dia de Pentecostes, bem como nas eras mais primitivas: “Homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo.” (2 Pe 1.21) Esses dons foram comumente concedidos como relíquias do extraordinário favor e amor de Deus, como no caso de Daniel. Ele foi um homem muito amado, e, portanto, foi admitido com esse grande privilégio de receber essas revelações (Dn 9. 23; 10.11-19). O apóstolo João, na condição de discípulo a quem Jesus amava, foi escolhido acima dos outros apóstolos para ser o homem a quem aqueles grandes eventos foram revelados, cujos registros estão no livro de Apocalipse.
Prossigo agora para mostrar que,
III. Embora esses sejam grandes privilégios, porém, a influência ordinária do Espírito de Deus, operando a graça da caridade no coração, é, de longe, privilégio mais excelente que quaisquer deles.
Essa é uma benção maior que o espírito de profecia, ou dom de línguas, ou de milagres, mesmo que seja a remoção de montanhas; uma benção maior que todos os dons miraculosos que foram concedidos a Moisés, Elias, Davi e aos doze apóstolos. Isso será evidente, se considerarmos:
1. Esta benção da graça salvadora de Deus é uma qualidade inerente na natureza daquele que lhe é objeto.
Este dom do Espírito de Deus, construindo uma índole verdadeiramente cristã na alma, e incitando exercícios graciosos nela, confere uma bênção que tem seu centro no coração, uma bênção que torna o coração, ou natureza do homem, excelente. De fato, na realidade, a própria excelência da natureza consiste nisso.
Porém, isso não ocorre com relação àqueles dons extraordinários do Espírito. Eles são coisas excelentes, mas não são propriamente a excelência da natureza de um homem, pois não são inerentes nela. Por exemplo, se um homem for agraciado com o dom de realizar milagres, esse poder não é inerente em sua natureza. Não é propriamente uma qualidade do coração ou da natureza do homem, como são a verdadeira graça e santidade.
Embora comumente os que possuem estes dons extraordinários de profecia,  línguas, e realização de milagres tenham sido pessoas santas, contudo, sua santidade não consistia em possuírem esses dons. Eles não são algo propriamente inerente no homem. São coisas excepcionais. São excelentes, mas não excelências na natureza do sujeito. São como uma bela vestimenta, que não altera a natureza de quem a veste. São como joias preciosas, com as quais o corpo pode ser adornado; mas a graça verdadeira é aquilo pelo qual a própria alma se torna à semelhança de uma joia preciosa.
2. O Espírito de Deus comunica a si mesmo muito mais ao conceder a graça salvadora do que ao conceder esses dons extraordinários.
O Espírito Santo, é verdade, produz efeitos, nos homens e pelos homens, com a concessão dos dons extraordinários do Espírito. Porém, não a ponto de propriamente comunicar aos homens a si mesmo, em sua própria natureza.
Um homem pode ter um estímulo extraordinário na sua mente pelo Espírito de Deus, em que algum evento futuro pode lhe ser revelado, ou pode lhe ser dada uma visão extraordinária, representando algum evento futuro. Nisso tudo, porém, é possível que o Espírito não se comunique de forma alguma, em sua santa natureza. O Espírito de Deus pode produzir efeito em coisas em que não comunica a si mesmo a nós. Assim Ele se movia sobre a face das águas, mas não a ponto de comunicar-se à agua.
Mas quando o Espírito, pela sua influência ordinária, concede a graça salvadora, nisso comunica a si mesmo à alma, em sua própria natureza santa – aquela sua natureza, por cuja causa é chamado com tanta frequência na Escritura de Espírito Santo. Por produzir esse efeito, o Espírito se torna princípio vital interior na alma, e o sujeito se torna espiritual, sendo denominado assim por causa do Espírito de Deus que nele habita, e de cuja natureza é participante. A graça é, por assim dizer, a natureza santa do Espírito comunicada à alma.
Mas os dons extraordinários do Espírito, tais como o conhecimento das coisas futuras, ou o poder de realizar milagres, não implicam nessa natureza santa. É certo que Deus, ao conceder os dons extraordinários do Espírito, comumente costuma conceder as influências santificadoras do Espírito com eles; mas um não implica o outro. E se Deus der apenas os dons extraordinários do Espírito, tais como o dom de profecias, de milagres etc., estes sozinhos jamais tornarão seus receptores participantes do Espírito, a ponto de serem espirituais em si mesmo, isto é, em sua própria natureza.
3. Essa graça ou santidade, que é o efeito da influência ordinária do Espírito de Deus nos corações dos santos, é em que consiste a imagem espiritual de Deus; e não nesses dons extraordinários do Espírito.
A imagem espiritual de Deus não consiste em ter poder para realizar milagres, ou prever eventos futuros, mas em ser santo, como Deus é santo; em ter no coração uma fonte divina e santa, nos influenciando a ter vidas santas e celestiais. De fato, há uma semelhança com Cristo quando se tem poder para realizar milagres, pois Cristo teve tal poder, e realizou uma multidão de milagres: “Aquele que crê em mim também fará as obras que eu faço e as fará maiores do que estas.” (João 14.12) Mas a imagem moral e semelhança de Cristo consistem muito mais em ter em nós mesmos a mesma mente de Cristo; em ter o mesmo Espírito que ele teve; em ser manso e humilde de coração; em ter um espírito de amor cristão, e andar como Cristo andou. Isso torna um homem muito mais semelhante a Cristo do que se pudesse realizar sempre muitos milagres.
4. Essa graça, ao contrário dos dons extraordinários do Espírito de Deus, é um privilégio que Deus concede apenas a seus eleitos e filhos.  
Foi observado antes que, embora Deus muito comumente escolhesse santos, e santos eminentes, para conceder os dons extraordinários do Espírito, contudo, nem sempre foi assim, mas esses dons são, às vezes, concedidos a outros. Eles têm sido comuns a justos e ímpios.
Balaão é estigmatizado na Escritura como ímpio (2 Pe 2.15; Jd 11; Ap 2.14), contudo, possuiu, por um tempo, os dons extraordinários do Espírito de Deus. Saul era ímpio, mas lemos que, ocasionalmente, esteve entre os profetas. Judas foi um dos que Jesus enviou para pregar e realizar milagres; ele é um dos doze discípulos de quem é dito em Mateus 10.1: “E, chamando os seus doze discípulos, deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expulsarem e para curarem toda enfermidade e todo mal.” Nos próximos versículos, vemos quem são eles; seus nomes todos são apresentados, e “Judas Iscariotes, aquele que o traiu,” estava entre os demais. No versículo 8, Cristo lhes diz: “Curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demônios.”
A graça de Deus no coração é um dom do Espírito Santo peculiar aos santos; é uma benção que Deus reserva apenas àqueles que são objetos de seu amor especial e peculiar. Mas os dons extraordinários do Espírito são do tipo que Deus, às vezes, concede àqueles a quem não ama, mas odeia, o que é sinal seguro de que aquela graça é infinitamente mais preciosa do que estes dons. Esse é o dom mais precioso, que é grande evidência do amor de Deus. Mas os dons extraordinários do Espírito não foram, nos dias da inspiração e dos milagres, sinais certos do amor de Deus. Os profetas não costumavam se deixar persuadir do favor e amor de Deus pelo fato de serem profetas, e terem revelações, mas por serem santos sinceros. O mesmo acontecia com Davi (veja Sl 15.1-5; 17.1-3; 119); e, de fato, todo o livro dos Salmos presta testemunho disso. Também o apóstolo Paulo, embora fosse tão grandemente privilegiado com os dons extraordinários do Espírito, estava, não obstante, tão longe de torná-los em evidência de seu bom estado, que declara expressamente que sem o amor eles nada são.
E assim podemos argumentar:
5. A partir do fruto e consequência dessas duas coisas diferentes, que uma é infinitamente mais excelente que a outra.
A vida eterna está, pelas promessas do evangelho, constantemente conectada com uma, e jamais com a outra. A salvação é prometida aos que tem a graça do Espírito, mas não àqueles que meramente têm os dons extraordinários. Muitos podem ter tido esses últimos, e ainda assim, foram para o inferno. Judas Iscariotes os possuiu, e foi para o inferno. E Cristo nos diz que muitos que os tiveram irão, no último dia, ser ordenados a se apartar, por serem obreiros da iniquidade (Mt 7. 22,23). Assim, quando prometeu aos discípulos esses dons extraordinários, pediu-lhes que se regozijassem não porque os demônios lhes eram sujeitos, mas porque seus nomes estavam escritos nos céus; dando a entender com isso que um poderia existir sem o outro (Lucas 10. 17-20, etc.).
Isso mostra que um é uma benção infinitamente maior que o outro, uma vez que carrega consigo a vida eterna. Pois a vida eterna é algo de infinita dignidade e valor, e aquilo que está infalivelmente conectado a ela deve ser uma bênção excelente, e infinitamente mais digna que qualquer privilégio que alguém possa possuir, e no final das contas ir para o inferno.
6. A felicidade em si consiste muito mais imediata e essencialmente na graça cristã, moldada pela influência ordinária do Espírito, do que nesses dons extraordinários.
A mais alta felicidade humana consiste na santidade, pois é por ela que a criatura racional é unida a Deus, a fonte de todo bem. A felicidade consiste de tal maneira em conhecer, amar e servir a Deus, e ter a índole santa e divina da alma, e os vívidos exercícios dela, que essas coisas farão um homem feliz sem necessidade de nada mais; entretanto, nenhuma outra alegria ou privilégio de qualquer tipo fará um homem feliz sem isso.
7. Esta índole divina da alma, que é o fruto das influências santificadoras ordinárias do Espírito, é o objetivo de todos os dons extraordinários do Espírito Santo.
Deus deu o dom de profecias, milagres, línguas etc., para este fim: promover a propagação e estabelecimento do evangelho no mundo. E o fim do evangelho é converter os homens das trevas para a luz, e do poder do pecado e de Satanás para servir ao Deus vivo, isto é, santificar os homens.
O propósito de todos os dons extraordinários é a conversão dos pecadores, e a edificação dos santos nessa santidade que é fruto das influências ordinárias do Espírito Santo. Por isso, o Espírito Santo foi derramado sobre os apóstolos após a ascensão de Cristo, e foram capacitados a falar em línguas, realizar milagres etc. Por isso, a muitos outros, naquele período, foram concedidos esses dons extraordinários do Espírito Santo: “E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores.” (Ef. 4. 11) Aqui, os dons extraordinários do Espírito são mencionados e, o fim deles é expresso nas próximas palavras: “Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo.” E que tipo de edificação do corpo de Cristo é essa, aprendemos no versículo 16: “A que faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor.” No amor, ou seja, na caridade, o mesmo que é dito no nosso texto, pois a palavra no original é a mesma, e o sentido também. E assim também ocorre em 1 Co 8.1: “o amor edifica.
Mas o fim é sempre mais excelente que os meios; essa é uma máxima universalmente aceita. Pois os meios não têm valor em si de outra forma a não ser quando estão subordinados ao fim. O fim, portanto, deve ser considerado como superior em excelência aos meios.
8. Os dons extraordinários do Espírito estão tão longe de gerar benefícios sem aquela graça que é fruto das influências ordinárias do Espírito; mas irão, ao contrário, agravar a condenação daqueles que os possuem.
 Sem dúvida, a condenação de Judas foi muito agravada por ter sido ele um dos que tiveram esses privilégios. E alguns que tiveram esses dons extraordinários cometeram o pecado contra o Espírito Santo, e seus privilégios foram a coisa principal que tornou seu pecado em pecado imperdoável; isso transparece em Hb 6. 4-6: “Porque é impossível que os que já uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se fizeram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e as virtudes do século futuro, e recaíram sejam outra vez renovados para arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo crucificam o Filho de Deus e o expõem ao vitupério.”
Os que caíram eram pessoas que apostataram do cristianismo após terem feito uma profissão publica dele, e receberem os dons extraordinários do Espírito Santo, como a maior parte dos cristãos daquela época recebia. Foram instruídos no cristianismo e, através das influências comuns do Espírito, receberam a Palavra com alegria, como os de Mateus 13.20, e, juntamente, receberam os dons extraordinários do Espírito: “se fizeram participantes do Espírito Santo,” falaram em línguas, profetizaram no nome de Cristo, e em seu nome expeliram demônios.
Ainda assim, depois de tudo, abertamente renunciaram ao cristianismo, juntaram-se aos que chamavam Cristo de impostor, como fizerem seus assassinos, e assim “de novo crucificaram o Filho de Deus e o expuseram ao vitupério.” É desses que o apóstolo fala: “é impossível que sejam outra vez renovados para arrependimento.”
Esses apóstatas, ao renunciar ao cristianismo, devem atribuir os poderes miraculosos que eles mesmos possuíram ao diabo. Assim, sua situação tornou-se desesperadora, e sua condenação deve ser grandemente agravada. E disto se evidencia que a graça salvífica é infinitamente mais digna e valiosa que os dons extraordinários do Espírito.
E, por fim,
9. Outra coisa que mostra a preferência dessa graça salvífica, que é fruto das influências ordinárias do Espírito Santo, sobre os dons extraordinários, é que um falhará e a outra não.
O apóstolo faz uso desse argumento, no contexto, para mostrar que o amor divino é preferível aos dons extraordinários do Espírito: “A caridade nunca falha; mas, havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá.” (v. 8) O amor divino permanecerá por toda a eternidade, mas os dons extraordinários do Espírito falharão no tempo. Eles são apenas meios, e quando o fim for obtido, cessarão. Mas o amor divino permanecerá para sempre.
APLICAÇÃO
Na aplicação desse assunto, destaco:
1. Se a graça salvífica é uma benção maior do que os dons extraordinários do Espírito, sem dúvida, portanto, podemos argumentar que ela é o maior privilégio e bênção que Deus concede a qualquer pessoa neste mundo.
Pois esses dons extraordinários do Espírito Santo, tais como o dom de línguas, milagres, profecias, etc. são os mais altos privilégios que Deus jamais concede aos homens naturais, e privilégios que, com exceção da era apostólica, raramente lhes foram concedidos.
Se o que foi dito for bem considerado, parecerá evidente, além de toda dúvida, que a graça salvífica de Deus no coração, operando uma índole santa e divina na alma, é a maior bênção que um homem pode receber neste mundo. É maior que quaisquer dons naturais, maior até do que as maiores habilidades naturais, maior do que quaisquer dotes mentais adquiridos, maior do que o conhecimento mais profundo, maior do que qualquer riqueza e honra temporais, maior do que ser um rei ou imperador, maior do que ser tirado do curral, como foi Davi, e ser entronizado sobre Israel. Todas as riquezas, honrarias e magnificências de Salomão, em toda a sua glória, quando comparadas a ela, nada são.
Foi grande o privilégio que Deus concedeu à bendita virgem Maria, ao conceder que dela nascesse o Filho de Deus. O fato de uma pessoa que era infinitamente mais digna do que os anjos; que, de fato, era o Criador e Rei da terra e do céu, o grande Soberano do mundo, fosse concebido em seu útero, nascesse dela, e amamentasse de seus seios, para ela foi maior privilégio do que ser mãe do filho do maior príncipe terreno que já existiu. Contudo, ainda isso não foi maior privilégio do que ter a graça de Deus no coração; ter Cristo, por assim dizer, nascido na alma, como ele próprio expressamente nos ensina: “E aconteceu que, dizendo ele essas coisas, uma mulher dentre a multidão, levantando a voz, lhe disse: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que mamaste! Mas ele disse: Antes, bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a guardam.
Uma vez, quando alguns lhe disseram que sua mãe e irmãos permaneciam do lado de fora, desejando falar-lhe, ele aí teve ocasião para fazê-los saber que havia um modo mais bendito de ser aparentado dele do que aquele que consistia em ser sua mãe e irmão, de acordo com a carne: “Ele, respondendo, disse ao que lhe falara: Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? E, estendendo a mão para os seus discípulos, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; porque qualquer que fizer a vontade de meu Pai, que está nos céus, este é meu irmão, e irmã, e mãe.
2. Daí que esses dois tipos de privilégios não devem ser confundidos, ao tomar coisas que têm alguma aparência de dom extraordinário e miraculoso do Espírito como sinais certos da graça.
Se as pessoas, a qualquer tempo, tiverem alguma impressão extraordinária feita sobre suas mentes, que pensarem seja de Deus, revelando-lhes algo que virá a acontecer no futuro, isso, se fosse real, seria evidência positiva de um dom extraordinário do Espírito Santo, isto é, o dom de profecia.
Mas, pelo que foi dito, é evidente que isso não seria sinal certo da graça, ou de alguma coisa salvífica. Mesmo se fosse real, digo, pois de fato não temos razão para encarar tais coisas, quando pretextadas, nestes dias, de outra maneira senão como ilusão [delusion]. E o fato de que tais impressões são causadas por textos da Escritura vindo repentinamente à mente, em nada altera a situação; pois um texto da Escritura vindo à mente, prova tanto que [aquelas impressões] são verdadeiras quanto a leitura dela o prova. Se a leitura de qualquer texto da Escritura, a qualquer tempo, e em todos os tempos, como está na Bíblia, não prova tal coisa, então a sua vinda súbita à mente tampouco o prova. Pois a mesma coisa que a Escritura fala naquela circunstância, fala nessa.
As palavras têm o mesmo sentido quando são lidas em uma sequência, e quando são subitamente trazidas à mente. E se alguém argumenta mais a partir disso, ele procede sem garantia [warrant]. Pois a vinda imediata [das palavras] à mente não dá a elas um novo sentido, que antes não possuíam.
Portanto, se alguém pensa estar em uma boa situação, porque tal texto da Escritura lhe vem subitamente à mente, se o texto não provar isso, como se encontra na Bíblia, e se não o tivesse provado, se tão-somente tivesse lido, enquanto lia determinada sequência, então, pelo fato de esse texto ter vindo à mente, ele não tem evidência de que esteja em um bom estado.
Portanto, se algo aparecer às pessoas, embora tenham tido uma visão de alguma forma visível, e ouvido alguma voz, essas coisas não devem ser tomadas como sinais da graça, pois se forem verdadeiras, e de Deus, não são a graça, pois a influência extraordinária do Espírito, produzindo visões e sonhos, como os profetas de outrora tiveram, não são sinais garantidos da graça. Todos os frutos do Espirito, sobre os quais devemos por o peso de ser evidência de graça, estão sumarizados na caridade, ou amor cristão, porque ela é a suma de toda graça. E o único modo, portanto, que alguém pode saber sua boa situação, é discernindo os exercícios dessa caridade divina em seus corações, pois sem a caridade, tenham os homens quaisquer dons que lhes agradem, eles nada são.
3. Se a graça salvífica é mais excelente do que os dons extraordinários do Espírito, então não podemos concluir do que a Escritura fala sobre a glória dos últimos dias da igreja, que os dons extraordinários do Espírito serão concedidos aos homens naqueles tempos.
Muitos estiveram prontos a pensar que, naqueles tempos gloriosos da igreja, que ocorrerão após o chamado dos judeus e da destruição do Anticristo, haverá muitas pessoas que serão inspiradas, e dotadas com um poder de realizar milagres.
Mas o que a Escritura diz com relação à glória daqueles dias não prova isso, nem o torna provável. Pois foi mostrado que o derramamento do Espírito de Deus, nas suas operações ordinárias e salvadoras, para encher os corações dos homens com uma índole cristã e santa, e conduzi-los aos exercícios da vida divina, é o mais glorioso dos meios de derramamento do Espírito que pode acontecer. É mais glorioso, muito mais glorioso, do que o derramamento dos dons miraculosos do Espírito.
Portanto, a glória daqueles tempos da igreja não requer nada semelhante a esses dons extraordinários. Aqueles tempos podem ser de longe os mais gloriosos da igreja, em todas as suas épocas, sem esses dons. O fato de não terem o dom de profecia, línguas, curas etc., como tiveram na era apostólica, não impedirá que sejam, de longe, os mais gloriosos tempos que já existiram, se o Espírito for derramado em grande medida em suas influências santificadoras; pois esse, como afirma expressamente o Apóstolo, é um caminho mais excelente (1 Co 12:31).
Esta glória é a maior glória da igreja de Cristo; e a maior glória que a igreja de Cristo desfrutará em qualquer período. Isso é o que tornará a igreja mais semelhante à igreja no céu, onde a caridade, ou amor, tem um reino mais perfeito do que qualquer número ou grau dos dons extraordinários do Espírito possam ter. De modo que não temos razão alguma para, por esse motivo, e talvez por qualquer outro, esperar que os dons extraordinários do Espírito sejam derramados naqueles tempos gloriosos que ainda estão por vir. Pois naqueles tempos não haverá uma nova dispensação a ser apresentada, e nem uma nova Bíblia a ser dada.
Nem temos qualquer razão para esperar que nossas presentes Escrituras devam ser adicionadas e aumentadas; ao contrário, no final dos escritos sagrados que agora temos, parece ser intimado que nenhuma adição deve ser feita até que Cristo venha. Veja Ap. 22:18-21.
4. Aqueles que receberam tal privilégio, como é implicado na influência do Espírito Santo operando a graça salvadora no coração, têm um motivo enorme de bendizer a Deus!
 Se tão-somente considerarmos seriamente o estado dos piedosos, daqueles que foram objetos dessa benção indizível, podemos apenas ficar espantados com a maravilhosa graça concedida a eles. E, quanto mais a consideramos, mais maravilhosa e inefável parecerá.
Quando lemos nas Escrituras do grande privilégio concedido à Virgem Maria, e ao apóstolo Paulo, quando foi arrebatado ao terceiro céu, estamos prontos a admirar esses privilégios como muito grandes. Porém, apesar de tudo, eles nada são quando comparados ao privilégio de ser semelhante a Cristo, e ter o seu amor no coração.
Portanto, que aqueles que esperam ter esta última bênção, considerem muito mais do que têm considerado como foi grande o favor que Deus lhes concedeu, e como é grande sua obrigação de glorificá-lo pela obra que realizou neles, e glorificar a Cristo que lhes adquiriu essas bênçãos com seu próprio sangue, e glorificar o Espírito Santo que o selou em suas almas. Que gênero de pessoas deveriam ser essas em toda santa conversação e piedade!
Considerem, vocês que esperam na misericórdia de Deus, como ele os promoveu e exaltou tão altamente; vocês não serão diligentes em viver para ele? Desonrarão a Cristo a ponto de tê-lo em baixa conta, não lhe dando todo o seu coração, mas seguindo após o mundo, negligenciando-o, e ao seu serviço e à sua glória? Não serão vigilantes contra si mesmos, contra uma disposição corrupta, mundana e orgulhosa, que pode levá-los para longe do Deus que lhes tem sido tão bondoso, e do Salvador que lhes adquiriu essas bênçãos, ao custo de sua própria agonia e morte? Não irão a cada dia fazer suas esta investigação urgente: “O que darei ao Senhor em troca dos seus benefícios para comigo?”
O que mais o Senhor poderia ter feito por vocês que não tenha feito? Que privilégios lhes poderia ter concedido, melhores em si, ou mais digno, para que engajasse seus corações em ações de graças? E considerem como têm vivido – como têm feito pouco por ele – o quanto fazem por si – quão pouco esse amor divino tem operado em seus corações para incliná-los a viver para Deus e Cristo, e para a expansão de seu reino? Oh! Como pessoas como vocês deveriam mostrar seu senso dos altos privilégios que possuem, pelos exercícios do amor; amor esse que é manifestado em relação a Deus em obediência, submissão, reverência, prazer, alegria e esperança; e em relação ao próximo em mansidão, simpatia, humildade, caridade, e na prática do bem a todos que tiverem oportunidade.
Finalmente,
5. O assunto exorta a todas as pessoas não regeneradas, aquelas que são estranhas a essa graça, a buscar essa bênção mais excelente para si mesmas.
Considere como são miseráveis agora vocês, que estão totalmente destituídos desse amor, distantes da justiça, amando as vaidades do mundo, e cheios de inimizade contra Deus. Como vocês suportarão quando ele tratar com vocês de acordo com o que são, apresentando-se em ira, como seu inimigo, e executando contra vocês a ira impetuosa.
Considerem também, que são capazes desse amor; e Cristo é capaz e está disposto a conceder-lhes; multidões já o obtiveram e foram abençoadas nele. Deus está buscando seu amor, e vocês estão sob a obrigação indizível de responder-lhe. O Espírito de Deus tem sido derramado maravilhosamente aqui. Multidões foram convertidas. Quase nenhuma família foi preterida. Em quase todas as casas alguns foram feitos nobres, reis e sacerdotes para Deus, filhos e filhas do Senhor Altíssimo!
Que tipo de pessoas, portanto, devemos ser nós todos; santas, sérias, justas, humildes, caridosas, devotadas no serviço de Deus, e fiéis para com nossos semelhantes! Como indivíduos e como povo, Deus nos abençoou muito ricamente, e tanto como indivíduos quanto povo, é apropriado que sejamos uma nação santa, sacerdócio real, um povo peculiar, compete a nós conceder os louvores àquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz: “Ouvi, pois, isto, vós que vos esqueceis de Deus; para que vos não faça em pedaços, sem haver quem vos livre. Aquele que oferece sacrifício de louvor me glorificará; e àquele que bem ordena o seu caminho eu mostrarei a salvação de Deus.” (Sl 50.23-23)